Hoje
quando desço a São João não me sinto mais como antes. Lá que era meu mundo;
onde me afundava em minha solidão, que apenas por vezes (?) dava as caras. Hoje
tudo está diferente. Sinto falta do velho Olido quando este era meu cinema
preferido, não hoje como centro cultural, como Galeria Olido. Ótimo e merecido
para este espaço, ótimo para a cidade. Progresso! Estamos mudados. A cidade se
torna cada vez mais jovem e eu sigo na contramão desta via. Mas isto é somente
a natureza da vida, das coisas. Isto de fato não me espanta, não me incomoda.
Sei que aquilo que embala nossos sonhos nem sempre embala nossa realidade. E o
tempo escancara esta verdade.
Em minhas transversalidades de hoje não vejo minhas casmurrices como algo
anormal; assim como não vejo minhas diferenças com as ruas desta nova cidade
como um incômodo. O que me traz uma certa acidez no estômago que transborda em
minhas palavras é o passado que persiste como inacabado. Isto sim é o que se
deveria se proibir. Proibir veemente que o passado nos assombre. Deveria haver
uma lei afirmando isto.
Desço a São João.
O velho Olido é diferente, digo até que é um novo Olido. Revitalizado. Se
os cinemas não estão mais aqui, ao menos os melhores (salvo o metamorfoseado
Marabá e próprio Olido), meus demônios estão. Porque ainda anda por aqui a
velha solidão que antes, nos meus melhores dias eram ocorrências ocasionais, às
vezes, até buscadas?
Desço a São João.
Aqui, de tudo, apenas a solidão persiste. Meus olhos olham as pessoas
(somente estas parecem ser as mesmas) e mais uma vez nada vêem. Minha boca nada
tem a dizer, apenas cala os ácidos. Meus passos seguem ritmados, como sempre,
na velocidade dos deserdados, mas hoje não é por mera opção. Apenas os
fantasmas a gritar em minha mente parecem os mesmos. É isto mesmo: hoje os
fantasmas gritam. Eis outra mudança; ou ... seria esta uma evolução? Fantasmas
novos? Seja como for já não me fazem rir como antes.
A última vez que havia cruzado estas avenidas e ruas, cinemas e bares,
dias e noites o fiz como despedida de uma vida que se renovava. Curioso: antes
eu me renovava e a cidade se tornava ultrapassada. Renovação! Eis a palavra
daquela época. Eis a palavra de hoje. Apenas os referidos são diferentes. Um
dia eu; hoje as ruas.
Naquele dia de despedida não via nada disto. Estranho, mas tudo parecia tão natural: eu apenas estava com todos os atributos dos vencedores. Nada podia ver se não a mim mesmo e minhas conquistas. Eu havia vencido. Vencido a própria cidade.
Naquele dia de despedida não via nada disto. Estranho, mas tudo parecia tão natural: eu apenas estava com todos os atributos dos vencedores. Nada podia ver se não a mim mesmo e minhas conquistas. Eu havia vencido. Vencido a própria cidade.
Hoje desço a São João que um dia venci. As solidões haviam ficado aqui,
assim como todos os outros fantasmas que apenas me faziam rir. Talvez os
fantasmas não sejam outros e sim eu que apenas não suporte mais as mesmas e já
envelhecidas piadas. Nada mais chato que piada repetida, principalmente se você
é a personagem da comédia que se quer esquecer. As solidões haviam ficado aqui
a esperam por mim. Portanto, eis me aqui.
Até quando?
Quando se tem vinte e poucos, tudo é fácil, tudo está lá, à mão, mas hoje
... Quando se tem vinte e poucos parece que nossos braços são gigantes, pois
tudo está ao alcance. O sonho mais distante está ali, logo na esquina, mas se
não estivesse se atravessaria mundos para pegá-los. O desejo mais aguçado se
realiza na noite que chega; para isto não havia senões. A vontade mais atrevida
é a ordem do dia; outra regra. Um mundo pode ser tomado pelas próprias mãos que
não vêem limites.
Até a solidão, como escape de alguns momentos vãos, pareciam rir como
piadas que se conta para se distrair nas fugas que eram por vezes necessárias.
Somente hoje consigo ver que de fato já eram os fantasmas que se anunciavam em
suas brincadeiras. Os fantasmas se anunciavam em todos os seus aspectos
apoiando-se nas mãos ilimitadas a taparem os olhos e no coração que era forte o
suficiente para enclausurar a mente. Hoje percebo que a vida deve ser jogada a
todos os instantes, até o limite, pois nunca há intervalos. Quando surgem os
intervalos é que somos nós que cansamos ou nos ferimos; ou ...
... simplesmente, fomos derrotados. Eis os fantasmas que surgem a fazerem
suas piadas, mas agora estão gritando minhas comédias.
Desço a São João.
Até quando? Agora que não tenho mais vinte e poucos; agora que me vejo em
denso intervalo?
(AEM, 2012 - Selecionado para a coletânea "São Paulo - Palavras e Progresso". Litteris Editora. Lançado na 22ª Bienal do Livro de São Paulo)
