(POSTAGEM EM 28/02/14)
INTERVALO PARA REFLEXÃO
Hoje quando desço a São João não me sinto mais como antes. Lá que era meu mundo; onde me afundava em minha solidão, que apenas por vezes (?) dava as caras. Hoje tudo está diferente. Sinto falta do velho Olido quando este era meu cinema preferido, não hoje como centro cultural, como Galeria Olido. Ótimo e merecido para este espaço, ótimo para a cidade. Progresso! Estamos mudados. A cidade se torna cada vez mais jovem e eu sigo na contramão desta via. Mas isto é somente a natureza da vida, das coisas. Isto de fato não me espanta, não me incomoda. Sei que aquilo que embala nossos sonhos nem sempre embala nossa realidade. E o tempo escancara esta verdade.
Em minhas transversalidades de hoje não vejo minhas casmurrices como algo anormal; assim como não vejo minhas diferenças com as ruas desta nova cidade como um incômodo. O que me traz uma certa acidez no estômago que transborda em minhas palavras é o passado que persiste como inacabado. Isto sim é o que se deveria se proibir. Proibir veemente que o passado nos assombre. Deveria haver uma lei afirmando isto.
Desço a São João.
O velho Olido é diferente, digo até que é um novo Olido. Revitalizado. Se os cinemas não estão mais aqui, ao menos os melhores (salvo o metamorfoseado Marabá e próprio Olido), meus demônios estão. Porque ainda anda por aqui a velha solidão que antes, nos meus melhores dias eram ocorrências ocasionais, às vezes, até buscadas?
Desço a São João.
Aqui, de tudo, apenas a solidão persiste. Meus olhos olham as pessoas (somente estas parecem ser as mesmas) e mais uma vez nada vêem. Minha boca nada tem a dizer, apenas cala os ácidos. Meus passos seguem ritmados, como sempre, na velocidade dos deserdados, mas hoje não é por mera opção. Apenas os fantasmas a gritar em minha mente parecem os mesmos. É isto mesmo: hoje os fantasmas gritam. Eis outra mudança; ou ... seria esta uma evolução? Fantasmas novos? Seja como for já não me fazem rir como antes.
A última vez que havia cruzado estas avenidas e ruas, cinemas e bares, dias e noites o fiz como despedida de uma vida que se renovava. Curioso: antes eu me renovava e a cidade se tornava ultrapassada. Renovação! Eis a palavra daquela época. Eis a palavra de hoje. Apenas os referidos são diferentes. Um dia eu; hoje as ruas.
Naquele dia de despedida não via nada disto. Estranho, mas tudo parecia tão natural: eu apenas estava com todos os atributos dos vencedores. Nada podia ver se não a mim mesmo e minhas conquistas. Eu havia vencido. Vencido a própria cidade.
Naquele dia de despedida não via nada disto. Estranho, mas tudo parecia tão natural: eu apenas estava com todos os atributos dos vencedores. Nada podia ver se não a mim mesmo e minhas conquistas. Eu havia vencido. Vencido a própria cidade.
Hoje desço a São João que um dia venci. As solidões haviam ficado aqui, assim como todos os outros fantasmas que apenas me faziam rir. Talvez os fantasmas não sejam outros e sim eu que apenas não suporte mais as mesmas e já envelhecidas piadas. Nada mais chato que piada repetida, principalmente se você é a personagem da comédia que se quer esquecer. As solidões haviam ficado aqui a esperam por mim. Portanto, eis me aqui.
Até quando?
Quando se tem vinte e poucos, tudo é fácil, tudo está lá, à mão, mas hoje ... Quando se tem vinte e poucos parece que nossos braços são gigantes, pois tudo está ao alcance. O sonho mais distante está ali, logo na esquina, mas se não estivesse se atravessaria mundos para pegá-los. O desejo mais aguçado se realiza na noite que chega; para isto não havia senões. A vontade mais atrevida é a ordem do dia; outra regra. Um mundo pode ser tomado pelas próprias mãos que não vêem limites.
Até a solidão, como escape de alguns momentos vãos, pareciam rir como piadas que se conta para se distrair nas fugas que eram por vezes necessárias. Somente hoje consigo ver que de fato já eram os fantasmas que se anunciavam em suas brincadeiras. Os fantasmas se anunciavam em todos os seus aspectos apoiando-se nas mãos ilimitadas a taparem os olhos e no coração que era forte o suficiente para enclausurar a mente. Hoje percebo que a vida deve ser jogada a todos os instantes, até o limite, pois nunca há intervalos. Quando surgem os intervalos é que somos nós que cansamos ou nos ferimos; ou ...
... simplesmente, fomos derrotados. Eis os fantasmas que surgem a fazerem suas piadas, mas agora estão gritando minhas comédias.
Desço a São João.
Até quando? Agora que não tenho mais vinte e poucos; agora que me vejo em denso intervalo?
(AEM, 2012 - Selecionado para a coletânea "São Paulo - Palavras e Progresso". Litteris Editora. Lançado na 22ª Bienal do Livro de São Paulo)
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(Postagem 15/05/13)
Ainda moço, nos longínquos idos de trinta, o Vicente (Centinho, desde bebê), caboclo esperto, bão de prosa (como se dizia na época; assim contou meu pai) resolveu vender a Bandolera, uma vaquinha muito boa de leite, diziam a melhor da região.
Não faltaram interessados na vaca da Dona Luzia (a verdadeira dona, consorte do Seu Centinho). Entres estes estava o Coroné Migué, o maior fazendeiro local, que foi até às terras dos donos da primorosa.
- Dia, Coroné!
- Dia, Seu Centinho!
- Que bãos vento troxe o coroné pra minha umirde terra?
- Tô sabeno que o senhor qué vendê a vaca da Dona Luzia. É verdade?
- É sim, coroné.
- Quanto o amigo qué pela Bordadera?
- BORDADERA? O coroné RESPEITE minha muié.
- Discurpa home, mas num tô falano da sua muié. Tô falano na vaca da sua muié. Ela num chama Bordadera?
- NÃO! O coroné é home valente, sei disso, mais eu num vô dexá o sinhô falá mar de minha Luzia! Minha Luzia bordadera!
- Discurpa, Seu Centinho, ma ...
- NUM CARECE SE DISCURPÁ! É mió o coroné issimbora de minha terra. Num vendo minha Bandolera pro coroné, nem por todo dinhero desse mundo.
- Discurpa, home. Foi um mar intendido. Pensei que a vaca chamava Bordadera.
- O CORONÉ TÁ DE BRINCADERA COMIGO?
- NUM TÔ NÃO, HOME! SÔ HOME DE RESPEITO I U CUMPADI DEVE SABÊ DISSO!
- Discurpa coroné, mais ...
- MAIS O QUÊ?
- Vamô mudá o rumo dessa prosa coroné!
-É mió memo, Seu Centinho.
- Mais ..., memo assim não tem negócio com o coroné.
- PRA NUM FICÁ DÚVIDA DÔ UM CONTO NA BANDOLERA!
- Bheinn! Nesse caso que o coroné tá mostrano que é home de horna, eu num posso dexá de dá valô pra isso; eu vendo!
Fez-se o negócio. O coronel, feliz da vida, levou a Bandolera para a Fazenda Monte Verde.
O Seu Centinho pegou o dinheiro e correu para casa. Tinha de falar com a mulher; e era urgente.
- LUZIA! LUZIA! LUZIA!
- LUZIA! LUZIA! LUZIA!
- Mais o que tá aconteceno home pro cê ficá nesse berrero todo?
- Muié, vai pra casa da sua mãe; e vai logo quo cê tem que aprendê bordá!
(AEM, 2011)
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Paranóia urbana
(Postagem em 21/03/13)
Três segundos apenas! Não vai dar tempo de atravessar. Vou ter de parar.
Droga! Vermelho.
Esperar sessenta segundos.
Este cruzamento é um tanto perigoso. Tem somente um cara para atravessar a rua; mais ninguém. Tranquilo...
Mas ...
... o cara não vai atravessar a rua?
55 segundos.
O cara estranho está parado olhado para outro lado, menos mal...
49 segundos.
O cara se virou para meu lado. Viu alguma coisa;
Parece não ter olhado diretamente meu carro.
46 segundos.
O cara começou a caminhar.
44 segundos.
Passa devagar paralelo ao carro.
41 segundos.
O cara está mais lento que os segundos no semáforo.
36 segundos.
Ela passa ao meu lado.
Sumiu de minha vista e eu o procuro pelo retrovisor.
32 segundos.
Ainda não o vejo.
Ele deve ter parado no “ponto cego”.
30 segundos.
Olho discretamente. Consigo vê-lo. Lá está ele parado novamente.
29 segundos.
De costas para mim. Olhando para alguma coisa, ou alguém. Provável olhar vago.
27 segundos.
Bom! Ele não olha para meu lado.
Há outros carros parados também.
25 segundos.
Ele está lá da mesma maneira. Olhando para outro lado.
23 segundos.
Ele pode estar armado.
22 segundos.
Faca, revólver, uma pedra para quebrar o vidro. Quantas coisas, entulhos, jogados ao chão que pode servir de arma...
Cidade imunda!
22 segundos.
Respirar.
21 segundos.
Olho mais uma vez pelo retrovisor.
Maldita cidade imunda.
20 segundos.
O cronômetro do semáforo nunca pareceu tão lento. Cada segundo parece minutos.
19 segundos.
Mais carros param atrás e do lado.
18 segundos.
Dez horas da manhã. Muitos carros. Mas há um cara estranho.
17 segundos.
Respirar, respirar, respirar.
14 segundos.
O cara voltou a caminhar lentamente.
11 segundos.
Já o posso vê-lo pelo retrovisor.
8 segundos.
Dá a impressão que ele caminha rápido agora.
5 segundos.
Foi embora.
4, 3, 2, 1 ....
(AEM, 2013)
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Inquisição de Íria
(Postagem em 05/03/13)
Primeiro dia de aula é sempre igual: as velhas amizades a se
confraternizarem, os velhos desafetos a se olharem atravessados. Alunos novos
perdidos; alguns novatos intimidados, outros nem tantos; novos amores à
primeira vista. Estava iniciando a quinta série. Naquela manhã, mal tinha
adentrado o portão da escola, o Ivan veio atabalhoadamente:
- Cara! Muito estranho. Coisa de ma-lu-co. Tão falando que ela é bruxa.
De bate pronto não entendi coisa com coisa do que ele queria dizer.
Enquanto ele esforçava para tentar explicar o que de fato havia ocorrido, a
galera toda já estava às voltas. Todo mundo falando ao mesmo tempo piorou tudo.
Aí é que tudo ficou confuso de vez.
Enquanto falavam fomos indo para o pátio. Mal cruzamos o corredor que dava
acesso a área interna, demos de cara com o assunto em pessoa: loirinha...,
linda..., magrinha... O cabelo é uma das coisas lindas que vi na vida. A brisa
que soprava leve sobre a franja dela fizera-me apaixonar. Admito envergonhado
que naquele dia era a segunda vez que me sentia apaixonado, sendo que a última
não fazia nem três minutos. Bem! Deixemos meu lado volúvel de lado.
Éramos mais ou menos cinco ou seis garotos juntos em início de aula, portanto, muita falação, muitas piadas, muitas críticas e nenhum pudor. Ao darmos de frente com Íria - o nome da loira -, viramos em direção a um outro grupinho de colegas. Em meio a toda aquela agitação, aos pouco fui me inteirando dos fatos. Porém, realmente fiquei impressionado ao ver o motivo do alarde
quando ela se levantou da mureta onde sentara e saiu em direção a sala de aula: uma cruz vermelha nas costas. Começava na altura da cintura e ia até a cabeça, sendo que a parte horizontal da cruz, era no lindo cabelo, dando um contraste, diria hoje, "legal", "da hora", "manero", ou algo do tipo, o rubro da cruz com o tom amarelado dos cabelos.
Éramos mais ou menos cinco ou seis garotos juntos em início de aula, portanto, muita falação, muitas piadas, muitas críticas e nenhum pudor. Ao darmos de frente com Íria - o nome da loira -, viramos em direção a um outro grupinho de colegas. Em meio a toda aquela agitação, aos pouco fui me inteirando dos fatos. Porém, realmente fiquei impressionado ao ver o motivo do alarde
quando ela se levantou da mureta onde sentara e saiu em direção a sala de aula: uma cruz vermelha nas costas. Começava na altura da cintura e ia até a cabeça, sendo que a parte horizontal da cruz, era no lindo cabelo, dando um contraste, diria hoje, "legal", "da hora", "manero", ou algo do tipo, o rubro da cruz com o tom amarelado dos cabelos.
Os comentários eram variados. Todos tinham a sua teoria. Todos conheciam
a história da menina. A impressão que se tinha era que todos na escola a
conheciam. Conheciam a família desde a origem mais remota.
Ouvi coisas como:
“- Dizem que ela mora na Vila Souza, naquela casa assombrada. Cê sabe
qual é?”
“- Eu vi a mãe dela entrando no cemitério, e já era quase meia noite. Não
vi sair.”
“- Dizem que o pai dela cria morcegos.”
“- Eu vi ela sair correndo quando viu um crucifixo. Verdaaaade. Juuuro!”
Neste fogo cruzado de denúncia, quem mais batia eram as meninas, deixando
bem óbvio que o faziam mais por simples inveja ou ciúme.
“- Estava no banheiro quando ela entrou; sai correndo, mas mesmo assim vi
que ela tem uma tatuagem preta nas costas.”
“- Soooonia do céu! Eu também vi! Vi direitinho: é uma caveira
horríííível!”
“- Eu tava com o Fabinho quando ela me encarou. O olho dela ficou
vermelho.”
“- Dizem que a cruz foi pintada com sangue.”
“- É verdade?”
“- É claro! Não sei se é sangue de gente. Acho que é de gato preto.”
As discussões prosseguiram o tempo todo. Íria ficou isolada. Ninguém
ousou aproximar-se da garota, nem mesmo durante as primeiras aulas que são mais
para confraternização do que propriamente para aulas. Quando soou o sinal da
saída para o intervalo, para não perdermos o hábito, já no primeiro dia, saímos
de forma desabalada, como se apostássemos quem seria o primeiro a chegar ao
pátio. Em poucos segundos já estávamos todos fora da sala. E ainda mais que
havia um motivo maior para sairmos. Iríamos ver a loira novamente e sabermos de
novidades sobre ela. Não demorou para satisfaremos nossas curiosidades, pois
logo a menina também surgiu no pátio. Como não poderia ser diferente, estava
só, sem uma única colega. Provavelmente ninguém a temia de fato por simples
terror, mas por não querer ser visto com ela. Estar com ela naquele dia ia
pegar mal.
Ao sair, Íria parou diante de nós e manteve-se estática, a mais ou menos
uns dez metros, fitando-nos por alguns segundos. Até que, após "tomar
coragem", começou a caminhar em nossa direção. Confesso que minhas pernas
bambearam. Tremi. Tremi de cima a baixo. A bruxinha vinha em nossa direção.
Naquele momento tive a impressão de estar só, isto queria dizer que a bruxinha
vinha em minha direção. Veio rápida e parou. Os olhos não eram vermelhos. - É
verde, pensei.
- Verdes! Verdes! – Falei sem sentir o que falava.
Ela veio até nós, só que para falar com Iolanda, irmã do Ivan, que estava
na sala dela. Nem sequer nos dirigiu o maravilhoso e tímido olhar. Conversou
com nossa amiga, como se não estivéssemos ali, até que mais confiante com
aquela que passara a considerar amiga, disse:
- Quando vinha para escola escorreguei e para não cair acabei me encostando
em um portão que estava sendo pintado. Acho que sujei a roupa.
Virou-se, e envergonhada perguntou:
- Sujou muito?
(AEM, 2002)
(AEM, 2002)

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