quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021

DA NATUREZA DAS LEIS DIVINAS

 COMENTÁRIO AO TEXTO DO LIVRO "AS LEIS" DE MARCO TÚLIO CÍCERO

Quinto: - Penso como tu, meu irmão, que o justo e verdadeiro é 

também eterno e que não nasce nem morre com a letra e as decisões legais.

 Marco: - Logo, assim como a mente divina é a lei quando  atinge no homem 

seu mais completo desenvolvimento; mas este desenvolvimento só se encontra 

na mente do sábio.  (Cícero, das Leis, I – II , pp 64-65)

 Em que consiste a lei?

Cada um fazer o que lhe cabe.[1]

            Princípio estabelecido por Platão em A República que traz um caráter intrínseco de justiça que de certa forma coloca cada individuo como artífice da lei. Cícero, como estudioso do mestre de Atenas irá segui-lo nesta trajetória para estabelecer os fundamentos do Direito.

            Dará às Leis status de divinas, ao menos as leis soberanas, as verdadeiras as que não se alteram com o tempo, pois são eternas; não se alteram com as tradições ou vontades humanas, pois são vindas da suprema natureza que ordena o que se deve fazer e proíbe o contrário[2], são vindas do próprio deus; são as Leis que pertence a todos os séculos e já era vigente quando não havia lei escrita nem Estado constituído.

            Inspirado na mente divina, nesta Razão, o homem, entenda-se aqui o sábio, tem de desenvolver e transformar em leis para a sociedade estes princípios naturais, onde fará prevalecer as boas ações e vetar as más, enfim: dar a cada um o que é seu[3]. Quanto a esta Natureza Divina, Cícero afirmará em Dos Deveres que esta ...

... colocou em todo o ser vivo a aptidão inata de conservação, para defender seu

corpo e sua vida, para evitar o que danifica, para procurar todo o necessário com

 que viver, o alimento, o abrigo e outras coisas dessa espécie[4].

            Vindo de sua origem estas necessidades, a de conservar através das aptidões inatas segue o homem pelos caminhos que lhe cabe, ou pensa que lhe cabe, esquecendo seu princípio mais fundamental: a alma, fonte do que há de mais divino seja na terra ou no céu; a razão, que está tanto no homem, quanto em Deus, vínculo primeiro entre criador e criatura.

            Para se definir o que é Direito, Cícero, irá buscar a lei suprema que foi inspirada pelo deus; enfim, é a Apolo, deus de Delfos, que compete estabelecer as leis mais importantes, as mais belas e as primeiras entre todas[5]. E das leis primeiras do deus está o conhecer-se a si mesmo, que é de fato conhecer todos os dons e dádivas dadas a nós pelos deuses ao nascermos, além de nos dar a oportunidade de alcançarmos a sabedoria.  E vem da sabedoria o caminho para a Razão que será lei quando atingir no homem seu mais completo desenvolvimento, assim como a lei suprema é da mente divina[6].

Para Cícero, é a razão o que conduz à sabedoria, esta quando desenvolvida e aperfeiçoada

E esta razão deve ser justa por ser em comum, só assim há  sentido. Daí resulta que também há lei. Logo, lei também é outro vínculo entre homens e deus, por conseguinte do direito[7].

            De fato será o Direito verdadeiro o que pode ser colocado ante o homem em que qualquer tempo, pois estará ligado a deus pelo vínculo da lei que vem da razão justa. É esta razão que diz que o estupro sempre será ato que atenta contra a justiça suprema, mesmo que a lei civil seja tolerante em certa época ou circunstância. Um ato criminoso irá separar o homem do homem e não o deixará dialogar e viver em comum[8].

 

DA NATUREZA DAS LEIS HUMANAS

 

... mas, tamanha é a corrupção proveniente dos maus costumes, que

destrói o que poderíamos chamar de lampejos que nos foram dados

 pela Natureza, fomentando e reforçando os vícios contrários[9].

            Longe de ser virtuosas, as leis que não se inspiram na alma, na razão vinculado ao deus, serão leis de seu próprio tempo, adequadas aos espíritos de uma certa época, mas que serão revogadas por interesses outros, ou até por uma lei que venha da razão justa. Ou atos que não sejam em dado momento questionado se são bons ou não, podem ser visto com olhos de retidão e considerados contra a sociedade; atos que coloquem o homem contra o homem, mas que a lei civil não condena, como exemplo, o duelo.

Esta corrupção proveniente de maus costumes destrói o que poderíamos chamar de lampejos que nos foram dados pela Natureza, fomentando e reforçando os vícios[10].

De certo modo, pessoas assim são muito engraçadas... Como

mencionávamos há pouco, elas estão sempre fazendo

leis e emendando-as, sempre pensando que descobrirão como

impor um limite às fraudes nos contratos  e, a respeito do que eu

estava falando agora, ignorando que, na realidade, estão

como que tentando cortar a cabeça da Hidra[11].

            Oras! É o que se faz quando se quer ignorar as leis dos deuses: criar leis, revogar, emendar, revogar. Sempre haverá uma cabeça para ser cortada, mas sempre haverá outra a crescer. Cícero quer fazer ver que estas leis de certa forma devoram-se a si mesma quando destroem os lampejos dados pela Natureza

            Embora a natureza tenha dotado o homem com aptidão inata de conservação, acima de tudo o dotou com alma, com a razão que o coloca acima de todos os outros seres, e, portanto, tem de prevalecer a justiça suprema acima da humana.

 

COMENTÁRIO FINAL

 

Filho da Natureza suprema, do Deus universal o homem recebeu o

dom divino da alma (tem sua força em Deus), mas os demais atributos, que

 pertencem à categoria das coisas mortais, são frágeis e efêmeros[12].

Vivendo a ambiguidade de Ser imortal, como alma, e mortal em sua matéria o homem tem de buscar a razão em meio a sua subsistência. Nesta busca encontra somente

na lei que é a razão suprema da Natureza, que ordena

o que se deve fazer e proíbe o contrário[13].

            Ainda, diz Cícero, que todos os povos sentem-se obrigados a crer em deus, mesmo que ignore este ente[14]. É nesta crença inata em um ser superior, por parte do homem em que o autor se baseia para formular sua filosofia, além, óbvio, de sua percepção em uma ordem superior, que conduz a alma humana a busca do bem. Daí segue em busca das Leis que conduzirão a sociedade.

            É nesta lei, fundamentada na razão divina que embasa sua teoria sobre o Direito justo, enfim

temos então um parentesco com os seres celestiais[15].

            É neste entendimento que fundamenta sua busca pela justiça: somos vinculados com o deus pela justa razão e pela lei e também por de certa forma termos intrínseco em nós a sociabilidade, que não podemos nem alegar que seja uma virtude[16].

Assim existe só um direito, aquele que constitui o vínculo

da Sociedade humana e que nasce de uma só Lei; e esta Lei

 é acertada em tudo que ordena e proíbe. Quem a ignora

é injusto, esteja ela escrita ou não em alguma parte[17].

            A mais verdadeira Lei, a da Natureza, a que vem do deus de Delfos. Esta é perene: o agressor de ontem não alcançado pela lei civil é criminoso pela Lei da Razão. Se não se pode puni-lo hoje, mas se já se reconhece como tal um ato como natureza criminosa, institui-se uma nova lei e torna este ato proibido por ser uma ação má e, portanto, passível de punição e de desonra. Mas, que esta lei seja embasada na razão e não mais uma cabeça de Hidra.

            E não se pode desconsiderar que

Nascemos para a justiça e o que o direito não se baseia

em convenções, mas sim na Natureza[18].

 

 

Bibliografia

 

Cícero, M. Túlio, Das Leis – Trad. Otávio T. de Brito – Clássico Cultrix

Cícero, M. Túlio, Dos Deveres – Trad. Alex Marins – Martin Claret

Cícero, M. Túlio, Da República – Trad.Amador Cisneiros – Edipro

Platão, A República – Trad. Anna Lia Amaral de Almeida Prado – Martins Fontes

 


[1] Platão, A República

[2] Cícero, das Leis, I – I , p 40

[3] Idem

[4]Cícero, dos Deveres, I – VI

[5] A República (427 b) - Platão

[6]Cícero, das Leis, I – II , p 65

[7] Cícero, das Leis, I – I , p 41

[8] Cícero, dos Deveres, I – IV

[9] Cícero, das Leis, I – I , p 46

[10] Cícero, das Leis, I – I , p 40

[11] Platão, A República (426 e)

[12] Cícero, das Leis, I – I , p 43

[13] Cícero, das Leis, I – I , p 40

[14] Cícero, das Leis, I – I , p 43

[15] Idem

[16] Cícero, da República, I – XXVI)

[17] D Cícero, das Leis, I – I , p 48

[18] Cícero, das Leis, I – I , p 44)


(AEM, 2010)