sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

BRUNO E AS FORMIGAS

Sempre que vejo um fila de formiguinhas no árduo trabalho do instinto, paro e perco-me na mais pura abstração. Fico olhando as criaturinhas a correr como se sobre trilhos. Antes, por pura curiosidade passava alguma coisa, como palito, prego, agulha, sobre o caminho e elas paravam como seu eu houvesse aberto uma cratera em sua rota, ou paravam como se batessem em uma parede; sem ter como prosseguir, voltavam pelo caminho demarcado.

Engraçado quando se encontram nas idas e vindas, acho que até “batem cabeça”, daí desviam e cada uma segue o próprio destino cego sem, contudo, descarrilar. 
Se livre de qualquer vontade ou desejo de fazer algo, ou, se não houver deveres clamando por mim, posso passar até minutos olhando a monótona e cansativa vida destes pequenos seres. 

Entro, como em um vazio mental; uma quase terapia. 
Quando volto aos raciocínios viajo em analogias sobre as vidas das formigas e as humanas. 
E não é preciso viajar muito para perceber que há muito de formiga no Homem. Somos bem mais que somente instintos, porém, ainda dominados por estes. Parece que o que mais fazemos é satisfazer ou descobrir meios mais eficazes e prazerosos de nos satisfazermos em nossos desejos mais imediatos, mais animalescos. Diferimos das formigas neste aspecto: encontramos prazer nos instintos. 

Não que seja mal a busca do prazer, muito pelo contrário, é uma necessidade básica; a busca do prazer nos instintos é quase um outro instinto de preservação, e nem estou falando de sexo. 

Até parece que corremos nos dias e noites rumo a uma forma de perpetuar os prazeres, ou de busca-los (nem aí falo somente em sexo). Chamamos, quase sempre, de busca da felicidade. Um disfarce nobre para nossos instintos.

Não faço estas reflexões por mera crítica ao Ser Humano, nem mesmo como autocrítica, que, confesso, se referente a mim seria bem justa, até porque é bom o prazer, muito bom mesmo; maravilhoso; e nem aqui estou somente falando de sexo. 

Deixando o lado instinto, antes que eu realmente comece a falar em sexo e descambe para onde não é meu interesse neste texto, parto para o que realmente busco nestas reflexões que é traçar um paralelo entre homens comuns e as formigas e Bruno; Giordano Bruno. Tento deixar os instintos em busca da inteligência e intuição. 

Usarei este ícone da Humanidade, sem maiores pretensões, pois conheço e reconheço minha pequenez e parca capacidade intelectual, ainda mais ante este gigante. 
E o usarei por ter assistido esta semana um filme biográfico sobre ele. 

Começo pelo fim do filme, ou seja, começo pela fogueira. Começo pelo fogo que tinha a intenção de salva-lo do inferno pelas blasfêmias e heresias que cometeu em escrever e falar contra a verdade secular. 

As chamas devoraram um corpo, mas é certo não devoraram o Espírito, a essência; a mesma essência que ele defendeu até o martírio. Não temeu o julgamento. Tão somente, encenou uma abjuração no primeiro julgamento por considerar que vivo poderia agir e divulgar seus pensamentos e lançar um pouco mais de luz sobre as trevas.

Este mártir do livre pensamento viajou como andarilho por toda Europa, levando sua lógica, razão e princípios; foi recebido em todas as cortes ditas civilizadas da época e deixou suas marcas. Falou daquilo que via como lógico e questionou pensamentos, principalmente teológicos, que considerava equivocado. Mas, o que soava inconsistente para sua razão lúcida e livre, para os tribunais da Inquisição era a verdade máxima. 
E a Santa Inquisição tentou condenar pensamentos livres na figura da carne. Quão vã tentativa. 

Mesmo que se condenem milhares de homens, milhões, a Verdade sempre será intocada. Nenhum tribunal do mundo foi e é capaz de revogar Leis Eternas. Bruno foi para a fogueira e suas obras condenadas ao mesmo destino. Deu-se, naqueles dias uma aparente vitória da Eclésia.

E nos dias de hoje, o que há de doutrinas e de fé? O que ainda ficou das passagens de Bruno, passados mais de quatrocentos anos? 
Talvez, o que de pior ainda sobra do século do mártir do livre pensamento, seja a massa que ainda é como de formigas. Se, por força das provas incontestáveis a Terra deixou de ser centro do Universo, a velha carcaça de carne e sangue ainda persiste em ser o centro da vida. 

Não são muitos os que conseguem realmente vislumbrar os infinitos no tempo e no espaço. Não é lugar comum buscar os fatos e as possibilidades sem uma antevisão que descaracterize o novo, aliás, o eterno, de forma que não deforme pelos conceitos amarrados em velhos pacotes já prontos e mofos. Prontos e feitos por homens com tochas à mão. Mofos por estarem aprisionados em celas filosóficas medievais. 

Vivemos atualmente em um mundo livre para o pensamento. Através dos milênios tanto se ambicionou, tanto se lutou por este livre pensar, para hoje nos prendermos nos instintos, no agora, no metro quadrado que em pisamos? Tanto se lutou para nos deixamos levar por encomendas em formato bonitinho com o intuito de não dizer nada e ficar tudo como está? 
Não! É certo que não. 

Pior ainda é que quando se busca um pensamento mais profundo, não fica difícil notar a falta de alma, de aspiração, de inspiração. Falta um quê de Giordano Bruno, falta uma nobreza de coração e mente que vem antes mesmo de dizer, de escrever. Talvez falte o fantasma das fogueiras: será que a Inquisição está fazendo falta? É curioso: alguns dos mais inspirados versos da MPB foram nos anos da ditadura.

Será que se não houvesse escravos, Castro Alves não “flutuaria”? Os versos de Castro Alves foram brilhante falando de tudo, portanto, não foram os navios negreiros que o fizeram.

Não é a falta de sombras mórbidas que cala os corações e mentes de hoje, mas a falta de um brilho com ligação mais profunda com o eu interior, ou uma “sombra” que nos siga e fale conosco, e nem precisa ser a que acompanhava Sócrates e o mantinha absorto; ou algo como Charles Dickens* que, dizem, conversava com seus personagens.

O mundo de hoje luta contra as agruras, que de fato não são somente de hoje, mas de sempre, com as mesmas armas que também são de sempre, exceto pela liberdade, fato novo, que é mal utilizada, ou mesmo ignorada. Será mero comodismo? Martela em minha mente um pensamento de Pietro Ubaldi: para homens novos, métodos novos. E os métodos milenares fazem com que o homem velho desejoso, necessitado de renascer, agonize.

E o homem velho não morre e segue a bater cabeça, tentando dar vidas e cores aos instintos, talvez como válvula de escape, sobrepujando a inteligência que tem única serventia: garantir os prazeres momentâneos. Nós, míseras formigas a nos perdemos ante os riscos que os destinos e fados impõem. Eis uma nova fogueira que queima mais lenta que a de Giordano Bruno, que morreu, mas vive.

* Não tenho certeza se era mesmo Dickens que conversava com os personagens; se não for este escritor que o outro me perdoe. Se alguém souber que é me diga.

(AEM, 2006)

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