domingo, 24 de setembro de 2017

Arte do descaso com a arte

          
Centro Municipal de Educação Adamastor - Guarulhos/SP
Exposição desprezada para acomodar um evento sobre educação


“Talvez se busque para arte um público que ela não tenha.”

Este pensamento de Paulo Venâncio Filho vez por outra volta a minha mente. E volta forte, sobretudo em momentos como o que estou testemunhando atualmente tão próximo; vem e me obriga a dar razão ao curador carioca que nos expressou isto em uma entrevista dada na época da 30 x Bienal.

O que sempre me traz à memória a entrevista vem das tantas e tantas exposições que já participei da montagem. E digo mesmo que ir a um Salão de Exposição e montar/pensar uma mostra é algo que realmente gosto muito. Sobretudo quando se trata de um artista de alto nível, como Gustavo Moreno, artista da Bahia que, inclusive, venceu o 15º Salão de Arte de Guarulhos e que foi profundamente desrespeitado pela organização de um evento que está acontecendo no Adamastor; assim como foram desrespeitados todos que são admiradores das artes e de Cultura verdadeira. Senti-me também atingido, pois, enfim foi mais uma das tantas exposições que participei na montagem.

Com todas as limitações e dificuldades imagináveis que há no poder público já participei de dezenas, talvez, centenas de montagens de exposições nos espaços oficiais da prefeitura (Adamastor, BML e CPE) e até em outros espaços; nos sete anos que trabalho com artes vi algumas vezes as exposições causaram algum tipo de problema, estranheza, algo perfeitamente normal (arte e artista causar), porém sempre o diálogo prevaleceu e sempre se solucionou; de alguns casos hoje em dia rimos das histórias que vivemos, como quando o Pato teve que “colocar cueca” em um grafite; ou uma nada discreta fita azul colocada para proteger, em um Salão de Arte, uma obra que tinha quase duzentas facas.

Porém, e a atualidade? O diálogo pode ser considerado coisa do passado?
Espero que não.

Mas, eu que passei uma temporada no CEU Paraíso – Alvorada retornei de onde não deveria/queria sair há dois meses, e neste tempo já vi o vazio deixado por obras retiradas de uma exposição de forma totalmente arbitrária por questões morais-religiosas; vi agentes/funcionários de uma universidade local colocar uma intervenção absurda em meio ao salão de exposição; vi trabalhadores de uma empresa que iria promover um evento começar a desmontar um sala que havíamos criado para guarda temporária de obras; e agora testemunho uma verdadeira ressignificação de uma exposição, uma total e devastadora desvalorização da arte e de um artista muito talentoso.

É com este espírito que se prepara mais uma Conferência de Cultura?
Fica a questão: que tipo de cultura irá se tratar?
Quando veremos uma Política Cultural prevalecer sobre a cultura política?

Espero, sinceramente, que as coisas mudem.
Espero que antes de se retirar obras, seja por que motivo for, se busque entender os porquês dos trabalhos, através do diálogo;
Espero que antes de se “atropelar” uma exposição, ou qualquer outra atividade, busque-se o diálogo antes de tomar atitudes arbitrárias;
Espero que antes de se agir de forma imediatista para atender seja quem ou o que for se saiba que as coisas são programadas, preparadas e pensadas com muita antecedência; e que assim devem ser;
Espero que, da maneira que for possível, o poder público não trabalhe para si próprio, mas para os cidadãos, que no caso da cultura “ganham o status” de artista e admiradores de artes, que merecem e devem ser respeitado como todos; até porque são fonte criadora, agregadora, inspiradora, questionadora e muito mais;

Enfim, espero que haja uma política onde se tenha como princípio, no mínimo, o respeito como norteador das ações.

Sei que ao modo em que as coisas estão não dá para esperar mais, pois se nota claro a percepção apresentada por Paulo Venâncio; há um predomínio escancarado do pragmatismo e da burocracia. E o pragmático é elemento terra. Não se espera que este seja capaz de absorver com facilidade coisas fluidas e coisas dos ares; coisas que queimam se tornam impensáveis  e inaceitáveis.

As coisas etéreas nem sequer podem ser vislumbradas.


(AEM, Set/17)

terça-feira, 20 de junho de 2017

Memórias de um menino-soldado

Resumo do livro por AEM - junho de 2017

Muito longe de casa

Ishmael Beah



Muito longe de casa - Memórias de um menino-soldado

O livro é uma autobiografia que mostra de forma muito dura e realista um curto período da vida do autor que vai de 1992 e 1998, onde traz alguns relatos com detalhes passados com minúcias que impressionam ao mostrar os limites que podem atingir a crueldade em uma guerra, principalmente quando perpetradas por crianças instigas por adultos tanto por meios de discursos torpes, como pelo vícios em drogas impostas pelo comando. Atos que são executados por soldados cooptados entre as aldeias, muitos ainda crianças, como ele mesmo, Ishmael, um menino de 12 anos que sonhava em ser cantor de Rap.
A história narrada no livro começa com três garotos (Junior, irmão de Ishmael, Talloi, ambos de 13 anos e o próprio Ishmael) que saem de sua aldeia apenas para ir a um show de talentos e se apresentar como grupo de rap; um quarto membro do grupo, Mohamed, não pode ir por ter de trabalhar com o pai. Os meninos apenas esperavam ter sucesso em sua apresentação, sem sequer vislumbrar a possibilidade de guerra; nunca pensavam esta possibilidade.             Porém, a partir deste momento a região em que vivem se transforma completamente e nada seria como antes; nunca mais.
O autor descreve os fatos em ordem cronológicas, mas constantemente em meio a um momento especifico traz rememorações que parecem fora de contexto, mas que é somente uma forma de demonstrar a força do que está dizendo. Longe de uma forma romanceada o livro leva às mais profundas reflexões sobre a capacidade humana seja para o bem, seja para o mal; seja quando vai em queda psíquica e moral, seja pela capacidade de nos recuperar. Certo que sempre se terá que ter apoio de pessoas dispostas e com coragem de agir na hora e de forma corretas.

Muito longe de casa
 Os meninos seguiam se divertindo no caminho, passaram por uma vila para visitar a avó dos irmãos; coisas triviais da idade. Somente quando em Mattru Jong, vila onde se apresentaria, começaram a ter notícias de sua aldeia, Mogbwemo, por pessoas que vinham fugindo do que seria um ataque perpetrados pelos rebeldes da RUF[1]. Os meninos passaram a esperar que os pais e o irmão mais novo também viessem fugidos do ataque, mas a espera foi em vão.
Resolveram ir ao encontro da família e no caminho encontravam pessoas que fugiam em desespero. Ouviram de uma mulher que os viu indo que muito sangue foi derramado aonde vocês vão. Até os bons espíritos abandonaram aquele lugar (p. 15). Porém, desistiram de ir à aldeia somente quando viram um automóvel vir em disparada e parar próximo a eles; este tinha sido alvo de ataque por metralhadoras onde todos foram baleados. Outro caso foi de uma mulher que trazia às costas uma criança morta; como ironia a criança fora escudo para a mãe, pois as balas não chegaram a atravessar o corpo da pequena filha.
Após testemunharem estas tragédias voltaram para Mattru Jong, onde permaneceram por alguns dias, até que chegou à vila pessoas poupadas, mas mutiladas (com quatros dedos decepados, exceto o polegar; esta mutilação era conhecida como one love[2]) trazendo mensagem dos rebeldes que diziam que estavam chegando àquela cidade e queriam ser bem recebidos, já que estavam lutando por nós (p. 22).
Embora a mensagem tenha chegado poucos dias depois à tomada da vila dos meninos os revolucionários demoraram para ir a Mattru Jung, o que fez as pessoas duvidarem que realmente iriam, enfim a guerra poderia estar distante; mas não era desta vez que teriam paz, pois os rebeldes chegaram e atacaram rápidos; os soldados que defendiam a vila haviam se antecipado e fugido abandonando as pessoas à própria sorte. Os meninos de Mogbwemo junto com amigos de Mattru Jong fugiram pelo único caminho possível, através de um pântano.
Iniciava para Ishmael uma fuga que duraria anos.
Seis meninos partem em jornada por segurança através da mata, passando por aldeias desertas; convivem com medos e fome. Em certo momento decidem voltar a Mattru Jung para buscar dinheiro que Junior havia deixado pela fuga urgente. Arriscando-se para buscar pertences, assim como outras pessoas, os meninos conseguiram encontrar o que buscavam. Porém, apesar dos riscos, pois quase foram pegos, o dinheiro não teve utilidade, ao menos àquela hora, pois não encontraram nada para comprar. Desesperados roubaram um menino de uns cinco anos que comia duas espigas de milho. Os pais do menino se apiedaram deles e deram mais espigas ao grupo; talvez fosse por medo, pois um grupo de meninos poderia significar terror; por isto os meninos começaram a caminhar fora de povoados, mas mesmo assim foram perseguidos e capturados algumas vezes, mas libertos por se mostrarem não pertencente a grupos rebeldes; eram somente crianças. Lamenta Ishmael Beah que uma das consequências da guerra civil é que as pessoas param de confiar uma nas outras e todo estranho se torna um inimigo (p. 39).
Seguiram para uma aldeia chamada Kamator onde, segundo uma mulher, estava um tia de Gibrilla, um dos meninos do grupo. Permaneceram nesta aldeia por três meses, onde trabalharam na lavoura até que um ataque inesperado dos rebeldes fez com que todos fugissem às pressas. Ishmael não encontrou Junior na fuga. Assim como os pais e o irmão mais novo, perdera seu irmão mais velho. Jamais voltaria a vê-los novamente.
O menino estava definitivamente só.
Do grupo de amigos que seguia antes, encontrou apenas Kaloko. Permaneceram com uma família no pântano, próxima à aldeia de Kamator que tinha sido totalmente queimada, onde voltou algumas vezes para tentar encontrar o irmão, mas sem sucesso.
Decidido a buscar outra sorte, pois sentia que a morte estava sempre esperando para buscá-lo, Ishmael deixou o local sozinho, pois Kaloko optou por ficar (p. 47).
Caminhou pela mata por muito tempo; dormia em aldeias abandonadas; se perdeu. Passou dias sem ver outra pessoa e quando encontrou teve uma sensação ambígua, pois estava feliz em ver outras pessoas e ao mesmo tempo triste porque a guerra tinha destruído a alegria da experiência de conhecer gente (p. 49). Isto porque uma família que encontrou em um rio demonstrou desconforto com sua presença; talvez medo. Seguiu seu caminho e foi testemunhando todos os horrores deixados pela guerra. Seguindo sem rumo entrou em uma floresta densa onde se perdeu. Encontrou uma fonte de água e lá se deparou com uma grande cobra; pareceu pouco assustado com o animal, outras pessoas assustavam mais. Mas a floresta tinha outros perigos: leopardos, leões e porcos selvagens. E realmente teve de fugir de porcos selvagens, escapando ao subir em uma árvore e lá permanecendo até os animais desistirem. Após dias sem encontrar outras pessoas se deparou com um grupo de garotos. Um tanto aterrorizado, sem conseguir correr pelo contato reconheceu uns meninos como sendo colegas de escola em Mattru Jong; não eram íntimos. Tinha novamente companhia de jornada. Agora eram sete meninos fugindo sem destino e sem esperança. Meninos cujo medo tinha tomado o lugar da inocência o medo os havia transformado em monstros (p. 57). Assim as pessoas viam os garotos, sobretudo os que andavam em grupos..
Depois de dias caminhando junto com os novos amigos, chegou à uma aldeia onde apenas um velho havia permanecido, isto porque não tinha forças para fugir. Segundo o homem todos fugiram quando souberam que os “os sete meninos” estavam vindo (p. 57). Havia um boato sobre os sete meninos que os antecedia. O velho lamentou por o país perder o bom coração que tinha (p. 57). As palavras do homem traduzia o sentimento que pairava sobre todos.
Os caminhos os levaram ao litoral, mas se as coisas não eram boas na floresta, na praia não foram melhores.
Presos por homens de uma tribo foram libertos, mas não sem antes terem os tênis retirados e serem afugentados por machados e arpões. Correram e somente se deram conta da natureza do castigo imposta pela tribo quando os pés começaram a queimar sob o chão que fervia durante o dia. Desesperados encontraram ao anoitecer uma cabana de pescadores e lá se esconderam, onde um homem apareceu e notou a condição lastimável que os meninos estavam. Nada disse e saiu. Voltou trazendo remédios e comida. Era um pescador que, assim como o velho não quis dizer o nome. Parece que em um mundo revirado as pessoas querem permanecer anônimas; é mais seguro. Ficaram na cabana até se recuperar, mas, mais uma vez tiveram que fugir às pressas, pois foram descobertos pelos habitantes da aldeia vizinha e foram para prendê-los. Novamente capturados, sendo liberados após o chefe local ouvir a fita de rap que Ishmael sempre levava consigo e ao ver o menino dançar e cantar conclui que eram apenas crianças, mas eles não podiam ficar e foram expulsos.
Continuaram a caminhada e após dias chegaram a uma aldeia com muita gente; lá uma mulher reconheceu Ishmael e disse que sua família estava em outra a dois dias de caminhada dali. Segunda a mulher nesta outra aldeia havia muita gente de Mattru Jong e de Serra Rutile, quem sabe todos poderiam encontrar as famílias lá.
Optaram por ir à aldeia no dia seguinte, porém durante a noite, enquanto dormia na varanda de uma casa, Saidu, um dos meninos, morreu. Auxiliados pelo dono da casa onde estava e por outros adultos enterram o amigo, que dissera certo dia que cada vez que corriam risco de morte, ele morria um pouco; chegaria um momento em que morreria de vez. Havia chegado o momento do menino quando possibilidades positivas acenavam para eles.
Após enterraram o amigo seguiram para a aldeia onde encontrariam familiares e amigos.
Ao se aproximar viram um homem colhendo bananas; foram até ele. O homem reconheceu Ishmael e disse feliz que toda a família do menino estava na aldeia a poucos minutos dali. Nigor Gasemu, este o nome do homem, pediu para que eles o ajudassem a carregar as bananas e isto os atrasou. Quando estavam para ir para o encontro ouviram tiros e viram fumaça. Correram até a aldeia, mas já era tarde, pois os rebeldes já haviam matados todos e ido embora, contudo, chegaram a tempo de abrir a porta de uma cabana em chamas e libertar uma mulher e uma criança, mas que não resistiram à queimadura. Eles reviram os corpos, mas não reconheceram ninguém; dos que estavam presos às cabanas em chamas ficou impossível qualquer identificação.
Ishmael agrediu Gasemu por considerar que este o atrasou e impediu que encontrasse com a família.
Desesperados os meninos começaram a discutir e a brigar, porém, foram interrompidos com o retorno de alguns rebeldes o que os fez se esconderem e ficar à espreita os observando a conversar e se gabar dos feitos àquele dia: três aldeias destruídas, sendo que aquela ninguém tinha escapado vivo. Tendo a presença descoberta pelos rebeldes tiveram que fugir mais uma vez sob fogo cerrado, sendo que nesta fuga Gasemu foi atingido e morreu nos braços de Ishmael que se arrependeu de o ter agredido.
Mais uma vez conseguiram escapar, mas uma nova vida estava preste a iniciar.

Menino-soldado
Após o ocorrido com a aldeia onde estava seus pais Ishmael e os outros meninos caminharam desolados e totalmente vencidos por dias quando encontraram um grupo de soldados do exército que os levaram para seu acampamento em uma aldeia chamada de Yele. Nesta aldeia havia uma certa sensação de segurança e lá, por um período, trabalharam em coisas triviais como buscar água e lavar pratos; viam filmes de guerra, como Rambo e Comando para matar. A guerra entravam por todos os lados, mesmo quando era para descontrair. Talvez quando jogavam futebol esqueciam das lutas; alguns meninos jogavam bolinha de gude.
Um dia Ishmael viu o comandante do local, o Tenente Jabati, lendo Júlio César de Shakespeare e disse que também gostava do autor e que já havia declamado aquela obra. Conversaram pouco e o Tenente se fixou no livro. O menino saiu.
Dias depois os rebeldes se aproximaram do acampamento e os tiros ecoavam constantemente e cada vez que um grupo que havia saído para luta, voltava menor. Com a aldeia sob cerco e pelos homens perdidos o Tenente apelou para os civis, homens e meninos, para que lutassem; quem não estivesse disposto a lutar não receberia mais comida e nem poderia permanecer na aldeia. Para reforçar o pedido o Tenente disse: Esta é a hora de vingar as mortes de suas famílias e garantir que outras crianças não percam a sua (p. 103). Se palavras não são suficientes, uma demonstração prática resolve. Assim pouco depois do anúncio novamente todos foram chamados para ouvir mais uma vez o Tenente. E ao se reunir todos viram dois corpos sendo carregados pelos soldados vindo da floreta. Segundo o comandante os dois mortos haviam optados por não lutar e fugiram, mas foram mortos pelos rebeldes. A mensagem era forte.
No dia seguinte começaram o treinamento.
Entre os novos soldados, a maioria entre doze e quinze anos, havia dois mais novos ainda: Sheku de sete anos e Josiah de onze anos. Todos ganharam tênis, camisetas e bermudas. Ishmael ganhou um Rebook; outros meninos ganharam Nike, outros Adidas. Todos ganharam AK 47, baioneta e a munição que pudessem carregar. Os treinos começaram pesados e não podia ser diferente e, a princípio, as bananeiras eram os inimigos; aqueles que mataram as famílias deles. Discursava o treinador com a baioneta à mão atacando a bananeira como fosse o pior dos inimigos: primeiro eu furo o estomago, aí furo o pescoço, e o coração dele. E aí arranco o coração e mostro pra ele, depois arranco seus olhos (p. 108). Depois as bananeiras eram estraçalhadas pelos golpes cheios de ódios dos meninos, seguindo o exemplo do cabo.
Os dias seguiram em treinamento e brincadeira entre os meninos até que chegou o momento em que foram pegar as armas, a munição que pudessem carregar e bandanas verdes; disseram a eles que se deveria atirar em qualquer um que não estivesse de bandana, desta vez não era somente mais um treinamento.
Um soldado jovem distribui um tablete branco que segundo ele iria dar uma levantada na energia (p. 112).  Josiah e Sheku que levavam suas armas arrastando no chão porque não tinham forças para carregá-las seguiam perto de Ishmael.
Chegaram a um ponto da floresta em que iriam enfrentar os rebeldes pela primeira vez. E não demorou para os tiros começarem e os mortos a se multiplicarem dos dois lados; Ishmael em seu primeiro combate perde um pouco o senso do que está acontecendo; não atira e sente sangue de outro soldado a jorrar sobre ele; procura por Sheku que chora pela mãe e vê quando uma granada cai perto do menino de sete anos e o arremessa contra uma árvore, foi até o pequeno e, este morre em seus braços; um soldado se aproxima e pede que se abaixe e atire.
Quando olhei para onde ele estava meus olhos notaram Musa, que tinha a cabeça coberta de sangue. levantei minha arma e puxou o gatilho, e  matou um homem. De repente, como se alguém estivesse disparando aquilo tudo dentro de meu cérebro, todos os massacres que eu já havia testemunhado desde o primeiro dia em que a guerra me tocou começaram a passar como flashes na minha cabeça. Cada vez que eu parava de atirar para trocar as câmaras e via meus dois amigos mortos, apontava com mais ódio a arma para o pântano e matava mais gente. Atirei em tudo que se movia, até que recebemos a ordem para retirada porque precisávamos de uma nova estratégia (p. 115).
À noite os pesadelos começaram a perseguí-lo.
            Passam a consumir drogas: maconha e brown brown (cocaína misturada com pólvora) e umas pílulas brancas que não sabiam o que era, mas que já viciara Ishmael. A nova rotina era perseguir rebeldes e matá-los. Tomar as aldeias e tudo o que havia: comida, armas, combustível e drogas. Nas tréguas o Tenente discursava com intuito de elevar o moral dos soldados e fazer entender que estes eram parte de algo realmente importante; e que não precisavam fugir de nada.
            Certo dia cinco rebeldes capturados foram posto como prova para os novos recrutas, estes deixados em pé ante os meninos foram alvo de uma disputa apresentada pelo Tenente. Cinco garotos escolhidos, entre eles Ishmael, para um desafio de quem iria degolar um rebelde mais rápido, como viram o cabo fazer no dia anterior. O primeiro a matar seria o vencedor.
            Terrível e desnecessário descrever o horror das cenas narradas por Ishmael Beah que, diga-se, foi o vencedor. Ante aquele que era responsável pelo massacre de sua família e responsável por toda desgraça que se abatera sobre ele, Ishmael o atacou sem o menor sentimento bom de humanidade; apenas ódio e certeza de estar se vingando do assassino de seus pais e irmãos. Como prêmio pela vitória passou a ser sub-tenente.
Assim foi vivendo: tomando aldeias, sempre sob efeito de drogas, caçando rebeldes: buscando sua eterna vingança.

Reabilitação
            Seguiu-se assim até 1996 quando foram até uma aldeia buscar suprimento e munição e aproveitar para rever amigos. Nesta aldeia, enquanto estavam lá, chegou um caminhão com quatro homens com camisetas da Unicef que estavam limpos demais pra quem estava numa guerra (p.112). Estavam lá para falar com o Tenente que por sua vez, após a conversa, reuniu os garotos e escolheu quinze que foram desarmados e receberam ordem para subir no caminhão; entre eles Ishmael que entregou as armas, mas ocultou a baioneta e uma granada que levou consigo. Por todo o caminho foi pensando em uma maneira de fugir e retornar para a batalha; mas nada de efetivo fez e chegou ao destino em Freetown, capital de Serra Leoa e lá foram levados para um abrigo, onde havia quartos limpos, camas e materiais de higiene; ganharam roupas novas; mas não se animavam com a nova vida como os agentes da Unicef pensaram que deveria ser, pois, se tinham tirado os meninos da guerra, estes ainda estavam envolvidos demais com o combate e tudo o que representava: drogas, ódios, lealdade aos pares. Talvez um sentimento de deserção, isto não constatei de forma explícita no texto de Ishmael Beah.
            No centro de reabilitação se confrontaram com outro grupo de meninos que se enfrentaram e se acusaram: um dizendo que o outro era rebelde, portanto teriam que ser exterminados; ali poderiam ainda seguir suas lutas. Porém os dois grupos eram do exército e as coisas se acalmara naquele momento, diferente do que se deu pouco depois quando de fato encontraram um grupo que fora resgatado entre os rebeldes. Além de Ishmael outros garotos haviam trazido baionetas. Dos dois lados. A luta foi feroz. Não estavam mais na floresta, mas não era o local que definia desejos de vingança; dois soldados do exército que tentaram apartar foram atacados e tiveram suas armas tomadas. A luta somente terminou com a chegada de mais homens do exército e deixou como saldo a morte de dois rebeldes e muitos feridos, entre eles os soldados.
            Levados para outro centro de reabilitação, o Lar Benin, que ficava na periferia de Freetown, já começaram a sofrer os efeitos da abstinência de drogas e ainda por estarem cheios de energias e ódios e turbinadas por desejos de matar não respeitavam os funcionários civis e não gostavam de receber ordens deles. Não foram responsabilizados pela briga no centro de reabilitação; aliás, eram sempre isentos de responsabilidade, pois todas pareciam recitar um mantra que irritava Ishmael: não é culpa de vocês.
            Irritados e sofrendo com a abstinência de drogas arrumaram confusão e agiam sem ser reprimidos; viviam da maneira que desejavam; vendia materiais; batiam nos moradores locais que passavam próximo do centro de reabilitação para buscar água, até que estes não passaram mais por lá. Pegavam medicamento na enfermaria para tentar amenizar os desejo por drogas. Brigavam sem motivos aparentes, destruíam móveis. Agrediam de forma violenta os funcionários, que no dia seguinte somente dizia: não é culpa de vocês. Isto irritava ainda mais os meninos. Certo dia começaram a quebrar os vidros das janelas; Ishmael sem saber o porquê começou a quebrar com as mãos, isto o deixou com muitos ferimentos que o fez ter de ir a enfermaria e onde tem contato mais próximo com a enfermeira que seria muito importante em sua recuperação psicológica; Esther seria, enquanto ele no Centro de Reabilitação, muito próxima a ele, tanto que em certo momento passa se considerar como uma irmã mais velha. Após o atendimento foi dito que teria de voltar no outro dia para fazer curativo, mas no mesmo dia foi acometido de enxaqueca tão intensa que desmaio e teve de ser levado de volta ao mini-hospital do centro de reabilitação. Quando acorda se levanta descarrega a raiva ao jogar na parede um copo de água.
            Uma forma de abrir caminho para o intimo dos meninos foi dar presentes e coisas que gostavam; coisas que se descobriam nos consultórios e na sala de aula; assim Esther deu um Walkman com fitas de rap para Ishmael. O menino começou a contar algumas histórias e pesadelos para a enfermeira. Sua ligação ficou tão forte que ansiava pela presença da “irmã mais velha” e falar sobre reggae e rap; letras e músicas e foi através da música que começou a conquistar equilíbrio e vencer os pesadelos. Foi através da ação das pessoas que diziam a frase que o irritava que passou a acreditar; mais que simples palavras “isto não é culpa sua” e passou a pensar que foi o tom verdadeiro na voz de Esther que fez aquilo finalmente começar a penetrar na minha cabeça e no meu coração (p. 160).
            Um certo dia alguns visitantes da Unicef iriam visitar o Lar Benin e foi pedido aos meninos que preparassem performances para os visitantes. Ishmael recitou Júlio César e atuou em uma enquête de hip hop que havia preparado (p. 163). A boa impressão deixada pelos meninos levou a ser elogiados pelo diretor do lugar, Sr. Kamara,  que o convidou para ser um porta-voz da instituição.
            No sexto mês no Lar, a única pessoa que conheceu na infância, Mohamed foi para o Centro e pode reencontrar uma conexão com o passado; na mesma época Leslie, um funcionário da Unicef, foi até ele e disse que tinha tentando encontrar algum parente, mas não tinha encontrado ninguém; o menino falou sobre um tio, irmão de seu pai, que vivia em Freetown: tio Tommy, um carpinteiro. As poucas informações que passou não eram suficientes para se encontrar uma pessoa, mas Leslie conseguiu e levou o tio até o menino.
            Após algumas semanas de contato e ser bem recebido pela família do tio foi viver com eles. Passado algum tempo foi convidado por Leslie a ir a uma entrevista onde se iria selecionar dois garotos para ir a Nova York participar de um evento. Ishmael foi selecionado e lá pode falar ao mundo sobre a vida de ser menino-soldado. No evento conheceu Laura Simms que se aproximou dele de forma definitiva, mesmo ele tendo voltado par Serra Leoa continuaram mantendo contato com a mulher.
            Embora tenha passado parte de sua vida fugido de guerras e ter sido resgatado do front a luta o alcançou novamente. Em meio a mais uma revolução Freetown foi assediada e foi tomada por protesto e lutas; novamente escassez, novamente ameaças; novamente tiros e mortes. Em meio ao pior momento das lutas seu tio ficou doente que sem médicos remédios não resistiu. Mais uma perda para o menino.
            Temendo ser reconhecido por soldados tomou mais uma vez o caminho da fuga, pois não queria voltar à guerra. Com dinheiro que recebia de Laura, que posteriormente o adotou, foi em uma fuga perigosa para Conakry, capital da Guiné; apesar dos problemas e dificuldades conseguiu chegar a embaixada de Serra Leoa no país vizinho onde termina seu relato para, posteriormente, seguir viagem e passar a viver definitivamente nos Estados Unidos.

            Difícil tentar entender e repassar uma história tão marcante vivida em uma realidade tão brutal que supera em muito a ficção. Porém, Ishmael Beah, mais que sobrevivente de um mundo revirado, é exemplo claro de que a vida é sempre mais forte que tudo. Sobrevier a qualquer custo; vencer traumas físicos e psicológicos; ser exemplo de resistência, não por ter pegado em armas, mas por as ter deixadas e entender todo um contexto que de fato nem ele e nem um dos outros milhares de meninos tinham culpa; todos eram vítimas de um sistema nefasto que somente se importam com poder e lucros, no caso de Serra Leoa advindo principalmente dos diamantes, que poderiam ser importante fonte de divisas para a sociedade em um país miserável, mas que de fato se torna uma verdadeira maldição. Não por acaso o revolucionário Foday Sankoh toma a região produtora; e não por desejos de se constituir uma nação melhor que aliados o apóiam. E para manter seus planos, o revolucionário faz uso de quem pode usar e paga com o salário do vício; da mesma forma as forças oficiais agem mantendo um exército maltrapilho e viciado em drogas e violências; sempre excitados por discursos de ódios e medos; sempre sob tensões e pressões extremas.
            Mas se por um lado há os que fazem de tudo para se manterem soberanos, por outro sempre aparecem as pessoas que realmente buscam por algo positivo; assim, se houveram pessoas que levaram Ishmael à queda como ser humano, por outro houveram pessoas que foram ao resgate da criança entorpecida para trazê-la de volta à vida.
Ishmael  teve um final feliz, daqueles que se vê em ficção, mas ele é somente um em meio às realidades que pululam banhadas em sangue e sustentadas por drogas e ódios, sem saber de fato porque e por quem lutam e morrem. Sem saber que a culpa não é deles.


Serra Leoa

Pequeno país localizado na África Ocidental com um território de 71.740 km2. A capital e principal cidade do país é Freetown. Faz fronteira com a Guiné ao norte, leste e oeste e Libéria a sudeste, sendo que seu litoral é banhado pelo Oceano Atlântico. A língua oficial é o inglês, que convive com outras línguas nacionais importantes, como o mende e o temne. Com uma população de cerca de seis milhões de habitantes (estimativa de 2016) a maioria dos leoneses, cerca de 60% seguem a religião islâmica, com 10% de cristãos e o restante de adeptos de religiões tradicionais africanas.
Os contatos europeus com Serra Leoa estão entre os primeiros na África Ocidental. Em 1652, os primeiros escravos na América do Norte foram trazidos de Serra Leoa para as ilhas ao largo da costa sul dos Estados Unidos. Durante os anos 1700 havia um próspero comércio de escravos vindos de Serra Leoa para as plantações da Carolina do Sul e Geórgia, onde a habilidade destes com o cultivo do arroz tornou-se particularmente valiosa.
A 27 de abril de 1961, Serra Leoa, que era dominada pela Inglaterra, torna-se independente, com Sir Milton Margai como primeiro-ministro, que e reeleito nas eleições do ano seguinte.
Após décadas de diversos golpes e muitas mudanças no cenário político uma terrível guerra civil segue-se entre 1991 e 2002, deixando mais de 50000 pessoas mortas, e acaba por misturar-se com a outra guerra civil que ocorria na vizinha Libéria, onde o corrupto líder Charles Taylor colabora com o seu colega leonense, Foday Sankoh, no tráfico de armas, drogas e diamantes, promovendo a corrupção e dilapidando o estado de forma inédita. Com o fim da guerra, a luta é para reconstruir o estado, um dos mais pobres do mundo, e impedir que este se transforme em um narcoestado, ponte para que a droga colombiana entre na Europa.[3]


Ismael Beah
Nasceu em Serra Leoa em 23 de novembro de 1980, mudou-se para os Estados Unidos em 1998 e atualmente vive em Nova York. Formado em Ciências Políticas pelo Oberlin College. É membro do Comitê de Direitos da Criança da ONG Human Rigths Watch. Participa de diversos congressos em importantes instituições como ONU e o Conselho de Relações Internacionais dos Estados Unidos, sobre criança afetadas pelas guerras.[4]



Bibliografia

BEAH, Ismael, Muito longe de casa; Memórias de um menino-soldado – Tradução de Cecília Gianetti; Ediouro; – Rio de Janeiro/RJ – 2007

Infoescola: http://www.infoescola.com/africa/serra-leoa/



[1] RUF (Revolutionary United Front) – Frente Unida Revolucionária; Grupo revolucionário liderado por Foday Sankoh, que aliados com forças estrangeiras inicia a guerra em 1991 em que Ishmael Beah  tomaria parte entre 1992 e 1995.
[2] Referência à musica de Bob Marley que, segundo Ishmael Beah, é devido à expressão utilizada antes da guerra onde as pessoas levantavam um polegar por amor ao reggae.
[3] Fonte: http://www.infoescola.com/africa/serra-leoa/
[4] Fonte: BEAH, Ismael, Muito longe de casa; Memórias de um menino-soldado – Tradução de Cecília Gianetti; Ediouro; – Rio de Janeiro/RJ - 2007


(AEM, 2017)

quinta-feira, 1 de junho de 2017

A INDÚSTRIA DAS LUTAS

Dissertação para a Disciplina de Sociologia da Arte do Curso de História da Arte - UNIFESP

         Muitas são as formas de lazer em um sábado de manhã em uma praça à beira de um lago; a caminhada, óbvio, é a mais comum entre outras formas de exercícios, mas o que chama a atenção são dois jovens com equipamentos próprios para lutas que treinam e se “boxeam” de forma espartana. Além deles, entre os transeuntes, há os que caminham levando cachorros de grande porte ostentando ferocidade. Assim segue uma manhã de sábado, onde os lutadores conseguem um certo destaque; seguem e confirmam Morin que diz que o consumo da cultura de massa se registra em grande parte no lazer moderno (Morin, p.67), pois aqui, nestas cenas não há como não reconhecer um vínculo com a profunda penetração das lutas de MMA[1] tem entre a população.
Este evento que ocupa de forma intensa a vida de uma parte especifica da sociedade, inclusive com canal exclusivo, traz novas nuances aos esportes violentos, embora estes estejam presente na História muito antes dos tempos modernos, na qual estes se confundem com a própria civilização e natureza humana; oras, o entretenimento e os elementos da industria cultural já existiam muito tempo antes dela e agora, são retirados do alto e nivelados à altura dos tempos atuais (Adorno, p. 126). E desde que o mundo é mundo as multidões amam os circenses, porém, se não pode ser considerada uma decadência dos costumes[2], com certeza não é uma elevação destes. Não por acaso os lutadores modernos são, por vezes, chamados de gladiadores.
No caso especifico dos lutadores modernos, o poder das mídias, sobretudo a televisão e a internet em todas suas possibilidades, vem e lhes dão um aura tão mítica quanto era dada aos antigos nas arenas greco-romanas. Então, um certo ar de semelhança (Adorno; p. 113) pode ser visto como reflexo nas mídias contemporâneas em seus alcances, que superam de forma impensada o cinema do tempo de Adorno e o próprio rádio, e das revistas que trazem em suas capas todos os apelos em fotografias de perfeitas produções e nos vídeos que buscam vender a imagem perfeita de sucesso, força e beleza.
            Levados de todas as formas pela industria de diversão de lutas, que gera milhões de dólares e bilhões de espectadores ao redor do mundo que querem/devem consumir as lutas nas arenas, os produtos tem como mote, por trás das câmeras, o intuito de criar protagonistas para que sejam os modelos de sucesso para uma nova sociedade onde se alia a cultura física e o luxo/extravagância; um modelo perfeito de sucesso a ser conquistado; um modelo “que está ao alcance de todos para ser igualado”. Isto faz com que as academias de lutas estejam sempre cheias de pretensos campeões. A própria encarnação do masscult que Humberto Eco se apropria de Dwight MacDonald[3].
            Os grandes campeões, os talentos que pertencem à industria mesmo antes de adentrá-la[4] estão lá para mostrar que qualquer um pode segui-lo, mesmo sendo isto apenas uma falácia; assim os dois lutadores que treinam à beira do lago, embora longe da condição que os poderiam levá-los às grandes redes, persistem em seus treinos; mas estes, assim como os que lotam as academias, estão cumprindo o seu papel de ver as lutas, comprar revistas e produtos discutíveis para melhorar suas condições atléticas que os intervalos do show oferecem; enfim cumprido o seu devido papel de consumidor da grande industria.
Assim o mundo caminha – muito além do cinema nas novas mídias - a seguir forçado a passar pelo filtro da indústria; os golpes dos rapazes são o prolongamento, não de um filme, mas de um show, que se viu “ao vivo”, mas que irá se repetir nas outras mídias, na troca, que vem desde as antigas arenas, mas que a sociedade moderna a refinou, e insiste reproduzindo rigorosamente o mundo de percepção (Adorno, p. 118), Eis a grande e eterna magia da indústria cultural: tirar da vida comum, colocá-la sob um pedestal como se a abrigar deuses e heróis e vender às ruas como a dizer como as coisas devem ser feitas e que todos podem ser igual a eles: o claro objetivo de vender ilusões. Porém, a tendência é que somente os homens capazes tenham caminho livre ante o liberalismo da industria cultural[5].
       Nos admiradores e praticantes de lutas que estão ligados em maior ou menor grau aos programas de televisão especializados neste seguimento vemos que são buscados como sendo um público heterogêneo, segundo os seus gostos em escala universal, onde se destroem as características culturais próprias de cada grupo (Eco, p. 40). Exemplo de globalização os grandes eventos deste jaez “aliciam” fãs em todos os países em suas ânsias comuns, e mesmo em suas diversidades se tornam irmanados em torno de um ente que os unem.
            Nos eventos das lutas-show de MMA, como não poderia ser diferente, vemos que se segue uma receita no formato: sempre o mesmo rito, sempre o previsível. Morin dirá que a industria cultural deve, pois superar constantemente uma contradição fundamental entre sua estruturas burocratizadas-padronizadas e a originalidade (individualidade e novidade) (Morin, p. 25); Adorno irá chamar de as formas fixas (Adorno, p. 126); o programa é de acordo a manter o interesse do espectador até o fim. Por vezes apresentar o novo na forma de um talento recém-descoberto nos embates preliminares: um nome novo; um produto novo. Mas ao final vem o esperado por todos: a grande luta da noite. Esta mesmice, demonstra como a máquina gira sem sair do lugar (Adorno, p. 126), pois, esta forma vem do centenário boxe. A padronização que está em todos as fases que vai do espetáculo ao espectador se mostra nos indivíduos que mantém uma identidade incondicional com o universal (Adorno, p. 144), como os lutadores amadores e os tipos que caminham com pitbulls à beira de um lago, tudo em uma grande mise-en-scène; oras, o padrão se beneficia do sucesso passado (Morin, p 28). É tão somente uma ação socialmente conservadora (Eco, p. 42).
Mas como de fato é este mundo tão distante para quem não o vive?
          Morin aconselha para o observador de seu tempo a ir ao cinema e vivenciar todas as nuances que envolve um espetáculo; desta forma para entender o que é este fenômeno do MMA teríamos que ligar a televisão e ver as lutas, comprar revistas, pesquisar na internet, frequentar uma academia, consumir alimentos específicos, assim seguir esta cultura de massa, no seu perpétuo movimento da técnica a alma humana da alma humana à técnica (Morin, p. 21).
E para nós do Hemisfério Sul, em especial, Adorno reserva um pensamento duro e diz que a vida no capitalismo tardio é um conjunto de rito de iniciação. Todos tem que mostrar que se identificam integralmente com o poder de quem não cessam de receber pancadas (Adorno, p. 144). Seria, esta nossa era? A era de mutações sociais e dos renascimentos totalitários (Eco, p. 48)? Assim temos que demonstrar que estamos conectados com o mundo já estabelecido e para isto importamos o consagrado, pois o que vale é a garantia do êxito de bilheteria (Adorno, p. 126) seja onde for e como for - traduzindo para nossos dias: audiência para as vantagens em contratos de publicidade.
            Os motivos neste setor, como em qualquer outro da industria cultural, são também marcadamente econômicos (Adorno, p. 131). Aqui também os talentos são atraídos pelos altos salários, selecionado, contudo, os talentos conciliáveis com o meio[6]. Daí vem que parece que tudo o mais se perde, a começar pelo sentido, enfim tudo aquilo que se criou com o objetivo de espetáculo passa a ser fonte de divisas e não de prazer. Desconsiderando no caso estudado o que se pode ser questionado de até onde haja algo que possa ser degustado como cultura nas lutas das arenas da consagrada franquia americana, mas pensando apenas no formato sempre igual de tudo o que é produzido pela industria, pela mídia, principalmente pela televisão. Aliás, o MMA é exemplo perfeito de um produto que se fosse tirada do ar não teria nada de mudança na sociedade. Pois trata-se de mais um fenômeno de alienação onde o “autor” (e “atores”) é excessivamente bem pago[7].
O MMA parece não se enquadrar no que Humberto Eco aponta na letra “n” do texto Apocalípticos e Integrados, uma vez que não se mostra como o que se possa dizer politicamente correto, pois está longe do signo do mais absoluto conformismo no campo dos costumes, dos valores culturais, dos princípios sociais e religiosos, das tendências políticas (Eco p. 42). Muito ao contrário. O evento se mostra totalmente anticivilização, apesar das regras e gerenciamento; apesar de parte do público sofisticado que frequenta os locais das arenas e do alcance televisivo; apesar das cifras envolvidas.
            Seja como for, os embates entre os modernos gladiadores estão na ordem do dia e vejo como exemplo muito peculiar da indústria do entretenimento pelo que representa, seja como força de penetração em um público bem específico; seja pelos valores monetários que garante e envolve os grandes espetáculos; seja pelas academias de lutas cheias de inspirados anônimos sonhando em estar nas arenas; e, sobretudo, pelo fútil. Porém os talentos, aqueles que já são da indústria mesmo antes de estar nela são raros, e é daí que, certamente, deve vir uma gama enorme de frustrações. Assim é no MMA, e em outros esportes, outros ramos da cultura; assim é no vale-tudo da vida.
            A grande maioria dos programas de televisão e, especial a industria no entorno do mundo das lutas estão há muito tempo nos infernos infraculturais (Morin, p. 17). Diferente do cinema, nas lutas parece não haver uma zona marginal[8], pois não vejo onde possa haver espaço para um trabalho que seja inspirado, embasado, vivido e praticado em formato de violência.


Notas


[1] MMA - (Mixed Martial Arts / Artes Marciais Mistas) é uma forma de combate que tem no UFC (Ultimate Fighting Championship) a mais conhecida franquia, esta que teve iniciou em meado de 1990 nos Estados Unidos e se tornou popular em todo o mundo.
[2] ECO, Humberto; Apocalípticos e Integrados
[3] ECO, Humberto; Apocalípticos e Integrados;
[4] ADORNO, Theodor W. e HORKHEIMER, Max ; Dialética do Esclarecimento – Fragmentos filosóficos
[5]  Idem
[6] MORIN, Edgar; Cultura de massas no século XX – O Espírito do tempo – I – Neurose; pág 32;
[7] Idem
[8] Idem

Bibliografia

ADORNO, Theodor W. e HORKHEIMER, Max ; Dialética do Esclarecimento – Fragmentos filosóficos; Trad. Guido Antonio de Almeida; Ed. Jorge Zahar Editor.

ECO, Humberto; Apocalípticos e Integrados; Trad. Pérola de Carvalho; Ed. Perspectiva.

MORIN, Edgar; Cultura de massas no século XX – O Espírito do tempo – I – Neurose; Trad. Maura Ribeiro Sardinha; Ed. Forense Uni


(AEM, 2016)