quinta-feira, 1 de junho de 2017

A INDÚSTRIA DAS LUTAS

Dissertação para a Disciplina de Sociologia da Arte do Curso de História da Arte - UNIFESP

         Muitas são as formas de lazer em um sábado de manhã em uma praça à beira de um lago; a caminhada, óbvio, é a mais comum entre outras formas de exercícios, mas o que chama a atenção são dois jovens com equipamentos próprios para lutas que treinam e se “boxeam” de forma espartana. Além deles, entre os transeuntes, há os que caminham levando cachorros de grande porte ostentando ferocidade. Assim segue uma manhã de sábado, onde os lutadores conseguem um certo destaque; seguem e confirmam Morin que diz que o consumo da cultura de massa se registra em grande parte no lazer moderno (Morin, p.67), pois aqui, nestas cenas não há como não reconhecer um vínculo com a profunda penetração das lutas de MMA[1] tem entre a população.
Este evento que ocupa de forma intensa a vida de uma parte especifica da sociedade, inclusive com canal exclusivo, traz novas nuances aos esportes violentos, embora estes estejam presente na História muito antes dos tempos modernos, na qual estes se confundem com a própria civilização e natureza humana; oras, o entretenimento e os elementos da industria cultural já existiam muito tempo antes dela e agora, são retirados do alto e nivelados à altura dos tempos atuais (Adorno, p. 126). E desde que o mundo é mundo as multidões amam os circenses, porém, se não pode ser considerada uma decadência dos costumes[2], com certeza não é uma elevação destes. Não por acaso os lutadores modernos são, por vezes, chamados de gladiadores.
No caso especifico dos lutadores modernos, o poder das mídias, sobretudo a televisão e a internet em todas suas possibilidades, vem e lhes dão um aura tão mítica quanto era dada aos antigos nas arenas greco-romanas. Então, um certo ar de semelhança (Adorno; p. 113) pode ser visto como reflexo nas mídias contemporâneas em seus alcances, que superam de forma impensada o cinema do tempo de Adorno e o próprio rádio, e das revistas que trazem em suas capas todos os apelos em fotografias de perfeitas produções e nos vídeos que buscam vender a imagem perfeita de sucesso, força e beleza.
            Levados de todas as formas pela industria de diversão de lutas, que gera milhões de dólares e bilhões de espectadores ao redor do mundo que querem/devem consumir as lutas nas arenas, os produtos tem como mote, por trás das câmeras, o intuito de criar protagonistas para que sejam os modelos de sucesso para uma nova sociedade onde se alia a cultura física e o luxo/extravagância; um modelo perfeito de sucesso a ser conquistado; um modelo “que está ao alcance de todos para ser igualado”. Isto faz com que as academias de lutas estejam sempre cheias de pretensos campeões. A própria encarnação do masscult que Humberto Eco se apropria de Dwight MacDonald[3].
            Os grandes campeões, os talentos que pertencem à industria mesmo antes de adentrá-la[4] estão lá para mostrar que qualquer um pode segui-lo, mesmo sendo isto apenas uma falácia; assim os dois lutadores que treinam à beira do lago, embora longe da condição que os poderiam levá-los às grandes redes, persistem em seus treinos; mas estes, assim como os que lotam as academias, estão cumprindo o seu papel de ver as lutas, comprar revistas e produtos discutíveis para melhorar suas condições atléticas que os intervalos do show oferecem; enfim cumprido o seu devido papel de consumidor da grande industria.
Assim o mundo caminha – muito além do cinema nas novas mídias - a seguir forçado a passar pelo filtro da indústria; os golpes dos rapazes são o prolongamento, não de um filme, mas de um show, que se viu “ao vivo”, mas que irá se repetir nas outras mídias, na troca, que vem desde as antigas arenas, mas que a sociedade moderna a refinou, e insiste reproduzindo rigorosamente o mundo de percepção (Adorno, p. 118), Eis a grande e eterna magia da indústria cultural: tirar da vida comum, colocá-la sob um pedestal como se a abrigar deuses e heróis e vender às ruas como a dizer como as coisas devem ser feitas e que todos podem ser igual a eles: o claro objetivo de vender ilusões. Porém, a tendência é que somente os homens capazes tenham caminho livre ante o liberalismo da industria cultural[5].
       Nos admiradores e praticantes de lutas que estão ligados em maior ou menor grau aos programas de televisão especializados neste seguimento vemos que são buscados como sendo um público heterogêneo, segundo os seus gostos em escala universal, onde se destroem as características culturais próprias de cada grupo (Eco, p. 40). Exemplo de globalização os grandes eventos deste jaez “aliciam” fãs em todos os países em suas ânsias comuns, e mesmo em suas diversidades se tornam irmanados em torno de um ente que os unem.
            Nos eventos das lutas-show de MMA, como não poderia ser diferente, vemos que se segue uma receita no formato: sempre o mesmo rito, sempre o previsível. Morin dirá que a industria cultural deve, pois superar constantemente uma contradição fundamental entre sua estruturas burocratizadas-padronizadas e a originalidade (individualidade e novidade) (Morin, p. 25); Adorno irá chamar de as formas fixas (Adorno, p. 126); o programa é de acordo a manter o interesse do espectador até o fim. Por vezes apresentar o novo na forma de um talento recém-descoberto nos embates preliminares: um nome novo; um produto novo. Mas ao final vem o esperado por todos: a grande luta da noite. Esta mesmice, demonstra como a máquina gira sem sair do lugar (Adorno, p. 126), pois, esta forma vem do centenário boxe. A padronização que está em todos as fases que vai do espetáculo ao espectador se mostra nos indivíduos que mantém uma identidade incondicional com o universal (Adorno, p. 144), como os lutadores amadores e os tipos que caminham com pitbulls à beira de um lago, tudo em uma grande mise-en-scène; oras, o padrão se beneficia do sucesso passado (Morin, p 28). É tão somente uma ação socialmente conservadora (Eco, p. 42).
Mas como de fato é este mundo tão distante para quem não o vive?
          Morin aconselha para o observador de seu tempo a ir ao cinema e vivenciar todas as nuances que envolve um espetáculo; desta forma para entender o que é este fenômeno do MMA teríamos que ligar a televisão e ver as lutas, comprar revistas, pesquisar na internet, frequentar uma academia, consumir alimentos específicos, assim seguir esta cultura de massa, no seu perpétuo movimento da técnica a alma humana da alma humana à técnica (Morin, p. 21).
E para nós do Hemisfério Sul, em especial, Adorno reserva um pensamento duro e diz que a vida no capitalismo tardio é um conjunto de rito de iniciação. Todos tem que mostrar que se identificam integralmente com o poder de quem não cessam de receber pancadas (Adorno, p. 144). Seria, esta nossa era? A era de mutações sociais e dos renascimentos totalitários (Eco, p. 48)? Assim temos que demonstrar que estamos conectados com o mundo já estabelecido e para isto importamos o consagrado, pois o que vale é a garantia do êxito de bilheteria (Adorno, p. 126) seja onde for e como for - traduzindo para nossos dias: audiência para as vantagens em contratos de publicidade.
            Os motivos neste setor, como em qualquer outro da industria cultural, são também marcadamente econômicos (Adorno, p. 131). Aqui também os talentos são atraídos pelos altos salários, selecionado, contudo, os talentos conciliáveis com o meio[6]. Daí vem que parece que tudo o mais se perde, a começar pelo sentido, enfim tudo aquilo que se criou com o objetivo de espetáculo passa a ser fonte de divisas e não de prazer. Desconsiderando no caso estudado o que se pode ser questionado de até onde haja algo que possa ser degustado como cultura nas lutas das arenas da consagrada franquia americana, mas pensando apenas no formato sempre igual de tudo o que é produzido pela industria, pela mídia, principalmente pela televisão. Aliás, o MMA é exemplo perfeito de um produto que se fosse tirada do ar não teria nada de mudança na sociedade. Pois trata-se de mais um fenômeno de alienação onde o “autor” (e “atores”) é excessivamente bem pago[7].
O MMA parece não se enquadrar no que Humberto Eco aponta na letra “n” do texto Apocalípticos e Integrados, uma vez que não se mostra como o que se possa dizer politicamente correto, pois está longe do signo do mais absoluto conformismo no campo dos costumes, dos valores culturais, dos princípios sociais e religiosos, das tendências políticas (Eco p. 42). Muito ao contrário. O evento se mostra totalmente anticivilização, apesar das regras e gerenciamento; apesar de parte do público sofisticado que frequenta os locais das arenas e do alcance televisivo; apesar das cifras envolvidas.
            Seja como for, os embates entre os modernos gladiadores estão na ordem do dia e vejo como exemplo muito peculiar da indústria do entretenimento pelo que representa, seja como força de penetração em um público bem específico; seja pelos valores monetários que garante e envolve os grandes espetáculos; seja pelas academias de lutas cheias de inspirados anônimos sonhando em estar nas arenas; e, sobretudo, pelo fútil. Porém os talentos, aqueles que já são da indústria mesmo antes de estar nela são raros, e é daí que, certamente, deve vir uma gama enorme de frustrações. Assim é no MMA, e em outros esportes, outros ramos da cultura; assim é no vale-tudo da vida.
            A grande maioria dos programas de televisão e, especial a industria no entorno do mundo das lutas estão há muito tempo nos infernos infraculturais (Morin, p. 17). Diferente do cinema, nas lutas parece não haver uma zona marginal[8], pois não vejo onde possa haver espaço para um trabalho que seja inspirado, embasado, vivido e praticado em formato de violência.


Notas


[1] MMA - (Mixed Martial Arts / Artes Marciais Mistas) é uma forma de combate que tem no UFC (Ultimate Fighting Championship) a mais conhecida franquia, esta que teve iniciou em meado de 1990 nos Estados Unidos e se tornou popular em todo o mundo.
[2] ECO, Humberto; Apocalípticos e Integrados
[3] ECO, Humberto; Apocalípticos e Integrados;
[4] ADORNO, Theodor W. e HORKHEIMER, Max ; Dialética do Esclarecimento – Fragmentos filosóficos
[5]  Idem
[6] MORIN, Edgar; Cultura de massas no século XX – O Espírito do tempo – I – Neurose; pág 32;
[7] Idem
[8] Idem

Bibliografia

ADORNO, Theodor W. e HORKHEIMER, Max ; Dialética do Esclarecimento – Fragmentos filosóficos; Trad. Guido Antonio de Almeida; Ed. Jorge Zahar Editor.

ECO, Humberto; Apocalípticos e Integrados; Trad. Pérola de Carvalho; Ed. Perspectiva.

MORIN, Edgar; Cultura de massas no século XX – O Espírito do tempo – I – Neurose; Trad. Maura Ribeiro Sardinha; Ed. Forense Uni


(AEM, 2016)

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