Resumo do livro por AEM - junho de 2017
Muito longe de
casa
Ishmael Beah
Muito longe de
casa - Memórias de um menino-soldado
O livro é uma autobiografia que mostra de forma
muito dura e realista um curto período da vida do autor que vai de 1992 e 1998,
onde traz alguns relatos com detalhes passados com minúcias que impressionam ao
mostrar os limites que podem atingir a crueldade em uma guerra, principalmente
quando perpetradas por crianças instigas por adultos tanto por meios de
discursos torpes, como pelo vícios em drogas impostas pelo comando. Atos que
são executados por soldados cooptados entre as aldeias, muitos ainda crianças,
como ele mesmo, Ishmael, um menino de 12 anos que sonhava em ser cantor de Rap.
A
história narrada no livro começa com três garotos (Junior, irmão de Ishmael,
Talloi, ambos de 13 anos e o próprio Ishmael) que saem de sua aldeia apenas
para ir a um show de talentos e se apresentar como grupo de rap; um quarto
membro do grupo, Mohamed, não pode ir por ter de trabalhar com o pai. Os
meninos apenas esperavam ter sucesso em sua apresentação, sem sequer vislumbrar
a possibilidade de guerra; nunca pensavam esta possibilidade. Porém, a partir deste momento a
região em que vivem se transforma completamente e nada seria como antes; nunca
mais.
O
autor descreve os fatos em ordem cronológicas, mas constantemente em meio a um
momento especifico traz rememorações que parecem fora de contexto, mas que é
somente uma forma de demonstrar a força do que está dizendo. Longe de uma forma
romanceada o livro leva às mais profundas reflexões sobre a capacidade humana
seja para o bem, seja para o mal; seja quando vai em queda psíquica e moral,
seja pela capacidade de nos recuperar. Certo que sempre se terá que ter apoio
de pessoas dispostas e com coragem de agir na hora e de forma corretas.
Muito longe de casa
Os meninos seguiam se divertindo
no caminho, passaram por uma vila para visitar a avó dos irmãos; coisas
triviais da idade. Somente quando em Mattru Jong, vila onde se apresentaria,
começaram a ter notícias de sua aldeia, Mogbwemo, por pessoas que vinham
fugindo do que seria um ataque perpetrados pelos rebeldes da RUF[1].
Os meninos passaram a esperar que os pais e o irmão mais novo também viessem
fugidos do ataque, mas a espera foi em vão.
Resolveram ir ao encontro da família e no caminho encontravam pessoas que
fugiam em desespero. Ouviram de uma mulher que os viu indo que muito sangue
foi derramado aonde vocês vão. Até os bons espíritos abandonaram aquele lugar (p.
15). Porém, desistiram de ir à aldeia somente quando viram um automóvel
vir em disparada e parar próximo a eles; este tinha sido alvo de ataque por
metralhadoras onde todos foram baleados. Outro caso foi de uma mulher que
trazia às costas uma criança morta; como ironia a criança fora escudo para a
mãe, pois as balas não chegaram a atravessar o corpo da pequena filha.
Após testemunharem estas tragédias voltaram para Mattru Jong, onde
permaneceram por alguns dias, até que chegou à vila pessoas poupadas, mas
mutiladas (com quatros dedos decepados, exceto o polegar; esta mutilação era
conhecida como one love[2])
trazendo mensagem dos rebeldes que diziam que estavam chegando àquela cidade
e queriam ser bem recebidos, já que estavam lutando por nós (p. 22).
Embora a mensagem tenha chegado poucos dias depois à tomada da vila dos
meninos os revolucionários demoraram para ir a Mattru Jung, o que fez as
pessoas duvidarem que realmente iriam, enfim a guerra poderia estar distante;
mas não era desta vez que teriam paz, pois os rebeldes chegaram e atacaram
rápidos; os soldados que defendiam a vila haviam se antecipado e fugido
abandonando as pessoas à própria sorte. Os meninos de Mogbwemo junto com amigos
de Mattru Jong fugiram pelo único caminho possível, através de um pântano.
Iniciava para Ishmael uma fuga que duraria anos.
Seis meninos partem em jornada por segurança através da mata, passando
por aldeias desertas; convivem com medos e fome. Em certo momento decidem
voltar a Mattru Jung para buscar dinheiro que Junior havia deixado pela fuga
urgente. Arriscando-se para buscar pertences, assim como outras pessoas, os
meninos conseguiram encontrar o que buscavam. Porém, apesar dos riscos, pois
quase foram pegos, o dinheiro não teve utilidade, ao menos àquela hora, pois
não encontraram nada para comprar. Desesperados roubaram um menino de uns cinco
anos que comia duas espigas de milho. Os pais do menino se apiedaram deles e
deram mais espigas ao grupo; talvez fosse por medo, pois um grupo de meninos
poderia significar terror; por isto os meninos começaram a caminhar fora de
povoados, mas mesmo assim foram perseguidos e capturados algumas vezes, mas
libertos por se mostrarem não pertencente a grupos rebeldes; eram somente
crianças. Lamenta Ishmael Beah que uma das consequências da guerra civil é
que as pessoas param de confiar uma nas outras e todo estranho se torna um
inimigo (p. 39).
Seguiram para uma aldeia chamada Kamator onde, segundo uma mulher, estava
um tia de Gibrilla, um dos meninos do grupo. Permaneceram nesta aldeia por três
meses, onde trabalharam na lavoura até que um ataque inesperado dos rebeldes
fez com que todos fugissem às pressas. Ishmael não encontrou Junior na fuga.
Assim como os pais e o irmão mais novo, perdera seu irmão mais velho. Jamais
voltaria a vê-los novamente.
O menino estava definitivamente só.
Do grupo de amigos que seguia antes, encontrou
apenas Kaloko. Permaneceram com uma família no pântano, próxima à aldeia de
Kamator que tinha sido totalmente queimada, onde voltou algumas vezes para
tentar encontrar o irmão, mas sem sucesso.
Decidido a buscar outra sorte, pois sentia que a morte estava sempre
esperando para buscá-lo, Ishmael deixou o local sozinho, pois Kaloko optou
por ficar (p. 47).
Caminhou pela mata por muito tempo; dormia em aldeias abandonadas; se
perdeu. Passou dias sem ver outra pessoa e quando encontrou teve uma sensação
ambígua, pois estava feliz em ver outras pessoas e ao mesmo tempo triste
porque a guerra tinha destruído a alegria da experiência de conhecer gente
(p. 49). Isto porque uma família que encontrou em um rio demonstrou desconforto
com sua presença; talvez medo. Seguiu seu caminho e foi testemunhando todos os
horrores deixados pela guerra. Seguindo sem rumo entrou em uma floresta densa
onde se perdeu. Encontrou uma fonte de água e lá se deparou com uma grande
cobra; pareceu pouco assustado com o animal, outras pessoas assustavam mais.
Mas a floresta tinha outros perigos: leopardos, leões e porcos selvagens. E
realmente teve de fugir de porcos selvagens, escapando ao subir em uma árvore e
lá permanecendo até os animais desistirem. Após dias sem encontrar outras
pessoas se deparou com um grupo de garotos. Um tanto aterrorizado, sem
conseguir correr pelo contato reconheceu uns meninos como sendo colegas de
escola em Mattru Jong; não eram íntimos. Tinha novamente companhia de jornada.
Agora eram sete meninos fugindo sem destino e sem esperança. Meninos cujo medo
tinha tomado o lugar da inocência o medo os havia transformado em
monstros (p. 57). Assim as pessoas viam os garotos, sobretudo os que
andavam em grupos..
Depois de dias caminhando junto com os novos amigos, chegou à uma aldeia
onde apenas um velho havia permanecido, isto porque não tinha forças para
fugir. Segundo o homem todos fugiram quando souberam que os “os sete
meninos” estavam vindo (p. 57). Havia um boato sobre os sete meninos que os
antecedia. O velho lamentou por o país perder o bom coração que tinha
(p. 57). As palavras do homem traduzia o sentimento que pairava sobre todos.
Os caminhos os levaram ao litoral, mas se as coisas não eram boas na
floresta, na praia não foram melhores.
Presos por homens de uma tribo foram libertos, mas
não sem antes terem os tênis retirados e serem afugentados por machados e
arpões. Correram e somente se deram conta da natureza do castigo imposta pela
tribo quando os pés começaram a queimar sob o chão que fervia durante o dia.
Desesperados encontraram ao anoitecer uma cabana de pescadores e lá se
esconderam, onde um homem apareceu e notou a condição lastimável que os meninos
estavam. Nada disse e saiu. Voltou trazendo remédios e comida. Era um pescador
que, assim como o velho não quis dizer o nome. Parece que em um mundo revirado
as pessoas querem permanecer anônimas; é mais seguro. Ficaram na cabana até se
recuperar, mas, mais uma vez tiveram que fugir às pressas, pois foram
descobertos pelos habitantes da aldeia vizinha e foram para prendê-los.
Novamente capturados, sendo liberados após o chefe local ouvir a fita de rap que
Ishmael sempre levava consigo e ao ver o menino dançar e cantar conclui que
eram apenas crianças, mas eles não podiam ficar e foram expulsos.
Continuaram a caminhada e após dias chegaram a uma
aldeia com muita gente; lá uma mulher reconheceu Ishmael e disse que sua
família estava em outra a dois dias de caminhada dali. Segunda a mulher nesta
outra aldeia havia muita gente de Mattru Jong e de Serra Rutile, quem sabe
todos poderiam encontrar as famílias lá.
Optaram por ir à aldeia no dia seguinte, porém durante
a noite, enquanto dormia na varanda de uma casa, Saidu, um dos meninos, morreu.
Auxiliados pelo dono da casa onde estava e por outros adultos enterram o amigo,
que dissera certo dia que cada vez que corriam risco de morte, ele morria um
pouco; chegaria um momento em que morreria de vez. Havia chegado o momento do
menino quando possibilidades positivas acenavam para eles.
Após enterraram o amigo seguiram para a aldeia onde
encontrariam familiares e amigos.
Ao se aproximar viram um homem colhendo bananas; foram até ele. O homem
reconheceu Ishmael e disse feliz que toda a família do menino estava na aldeia
a poucos minutos dali. Nigor Gasemu, este o nome do homem, pediu para que eles
o ajudassem a carregar as bananas e isto os atrasou. Quando estavam para ir
para o encontro ouviram tiros e viram fumaça. Correram até a aldeia, mas já era
tarde, pois os rebeldes já haviam matados todos e ido embora, contudo, chegaram
a tempo de abrir a porta de uma cabana em chamas e libertar uma mulher e uma
criança, mas que não resistiram à queimadura. Eles reviram os corpos, mas não
reconheceram ninguém; dos que estavam presos às cabanas em chamas ficou
impossível qualquer identificação.
Ishmael agrediu Gasemu por considerar que este o atrasou e impediu que
encontrasse com a família.
Desesperados os meninos começaram a discutir e a brigar, porém, foram
interrompidos com o retorno de alguns rebeldes o que os fez se esconderem e
ficar à espreita os observando a conversar e se gabar dos feitos àquele dia:
três aldeias destruídas, sendo que aquela ninguém tinha escapado vivo. Tendo a
presença descoberta pelos rebeldes tiveram que fugir mais uma vez sob fogo
cerrado, sendo que nesta fuga Gasemu foi atingido e morreu nos braços de
Ishmael que se arrependeu de o ter agredido.
Mais uma vez conseguiram escapar, mas uma nova vida estava preste a
iniciar.
Menino-soldado
Após o ocorrido com a aldeia onde estava seus pais Ishmael e os outros
meninos caminharam desolados e totalmente vencidos por dias quando encontraram
um grupo de soldados do exército que os levaram para seu acampamento em uma
aldeia chamada de Yele. Nesta aldeia havia uma certa sensação de segurança e
lá, por um período, trabalharam em coisas triviais como buscar água e lavar
pratos; viam filmes de guerra, como Rambo e Comando para matar. A guerra
entravam por todos os lados, mesmo quando era para descontrair. Talvez quando
jogavam futebol esqueciam das lutas; alguns meninos jogavam bolinha de gude.
Um dia Ishmael viu o comandante do local, o Tenente Jabati, lendo Júlio
César de Shakespeare e disse que também gostava do autor e que já havia
declamado aquela obra. Conversaram pouco e o Tenente se fixou no livro. O
menino saiu.
Dias depois os rebeldes se aproximaram do acampamento e os tiros ecoavam
constantemente e cada vez que um grupo que havia saído para luta, voltava
menor. Com a aldeia sob cerco e pelos homens perdidos o Tenente apelou para os
civis, homens e meninos, para que lutassem; quem não estivesse disposto a lutar
não receberia mais comida e nem poderia permanecer na aldeia. Para reforçar o
pedido o Tenente disse: Esta é a hora de vingar as mortes de suas famílias e
garantir que outras crianças não percam a sua (p. 103). Se palavras não são
suficientes, uma demonstração prática resolve. Assim pouco depois do anúncio
novamente todos foram chamados para ouvir mais uma vez o Tenente. E ao se
reunir todos viram dois corpos sendo carregados pelos soldados vindo da
floreta. Segundo o comandante os dois mortos haviam optados por não lutar e
fugiram, mas foram mortos pelos rebeldes. A mensagem era forte.
No dia seguinte começaram o treinamento.
Entre os novos soldados, a maioria entre doze e quinze anos, havia dois
mais novos ainda: Sheku de sete anos e Josiah de onze anos. Todos ganharam
tênis, camisetas e bermudas. Ishmael ganhou um Rebook; outros meninos ganharam
Nike, outros Adidas. Todos ganharam AK 47, baioneta e a munição que pudessem
carregar. Os treinos começaram pesados e não podia ser diferente e, a
princípio, as bananeiras eram os inimigos; aqueles que mataram as famílias
deles. Discursava o treinador com a baioneta à mão atacando a bananeira como
fosse o pior dos inimigos: primeiro eu furo o estomago, aí furo o pescoço, e
o coração dele. E aí arranco o coração e mostro pra ele, depois arranco seus
olhos (p. 108). Depois as bananeiras eram estraçalhadas pelos golpes cheios
de ódios dos meninos, seguindo o exemplo do cabo.
Os dias seguiram em treinamento e brincadeira entre os meninos até que
chegou o momento em que foram pegar as armas, a munição que pudessem carregar e
bandanas verdes; disseram a eles que se deveria atirar em qualquer um que não
estivesse de bandana, desta vez não era somente mais um treinamento.
Um soldado jovem distribui um tablete branco que segundo ele iria dar
uma levantada na energia (p. 112).
Josiah e Sheku que levavam suas armas arrastando no chão porque não
tinham forças para carregá-las seguiam perto de Ishmael.
Chegaram a um ponto da floresta em que iriam enfrentar os rebeldes pela
primeira vez. E não demorou para os tiros começarem e os mortos a se
multiplicarem dos dois lados; Ishmael em seu primeiro combate perde um pouco o
senso do que está acontecendo; não atira e sente sangue de outro soldado a
jorrar sobre ele; procura por Sheku que chora pela mãe e vê quando uma granada
cai perto do menino de sete anos e o arremessa contra uma árvore, foi até o
pequeno e, este morre em seus braços; um soldado se aproxima e pede que se
abaixe e atire.
Quando olhei para onde ele estava meus olhos notaram Musa, que tinha a
cabeça coberta de sangue. levantei minha arma e puxou o gatilho, e matou um homem. De repente, como se alguém
estivesse disparando aquilo tudo dentro de meu cérebro, todos os massacres que
eu já havia testemunhado desde o primeiro dia em que a guerra me tocou
começaram a passar como flashes na minha cabeça. Cada vez que eu parava de
atirar para trocar as câmaras e via meus dois amigos mortos, apontava com mais
ódio a arma para o pântano e matava mais gente. Atirei em tudo que se movia,
até que recebemos a ordem para retirada porque precisávamos de uma nova
estratégia (p. 115).
À noite os pesadelos começaram a perseguí-lo.
Passam a consumir drogas: maconha e brown
brown (cocaína misturada com pólvora) e umas pílulas brancas que não sabiam
o que era, mas que já viciara Ishmael. A nova rotina era perseguir rebeldes e
matá-los. Tomar as aldeias e tudo o que havia: comida, armas, combustível e
drogas. Nas tréguas o Tenente discursava com intuito de elevar o moral dos
soldados e fazer entender que estes eram parte de algo realmente importante; e
que não precisavam fugir de nada.
Certo dia cinco rebeldes capturados
foram posto como prova para os novos recrutas, estes deixados em pé ante os
meninos foram alvo de uma disputa apresentada pelo Tenente. Cinco garotos
escolhidos, entre eles Ishmael, para um desafio de quem iria degolar um rebelde
mais rápido, como viram o cabo fazer no dia anterior. O primeiro a matar seria
o vencedor.
Terrível e desnecessário descrever o
horror das cenas narradas por Ishmael Beah que, diga-se, foi o vencedor. Ante
aquele que era responsável pelo massacre de sua família e responsável por toda
desgraça que se abatera sobre ele, Ishmael o atacou sem o menor sentimento bom
de humanidade; apenas ódio e certeza de estar se vingando do assassino de seus
pais e irmãos. Como prêmio pela vitória passou a ser sub-tenente.
Assim foi vivendo: tomando aldeias, sempre sob efeito de drogas, caçando
rebeldes: buscando sua eterna vingança.
Reabilitação
Seguiu-se assim até 1996 quando
foram até uma aldeia buscar suprimento e munição e aproveitar para rever
amigos. Nesta aldeia, enquanto estavam lá, chegou um caminhão com quatro homens
com camisetas da Unicef que estavam limpos demais pra quem estava numa
guerra (p.112). Estavam lá para falar com o Tenente que por sua vez, após a
conversa, reuniu os garotos e escolheu quinze que foram desarmados e receberam
ordem para subir no caminhão; entre eles Ishmael que entregou as armas, mas
ocultou a baioneta e uma granada que levou consigo. Por todo o caminho foi
pensando em uma maneira de fugir e retornar para a batalha; mas nada de efetivo
fez e chegou ao destino em Freetown, capital de Serra Leoa e lá foram levados
para um abrigo, onde havia quartos limpos, camas e materiais de higiene;
ganharam roupas novas; mas não se animavam com a nova vida como os agentes da
Unicef pensaram que deveria ser, pois, se tinham tirado os meninos da guerra,
estes ainda estavam envolvidos demais com o combate e tudo o que representava:
drogas, ódios, lealdade aos pares. Talvez um sentimento de deserção, isto não
constatei de forma explícita no texto de Ishmael Beah.
No centro de reabilitação se
confrontaram com outro grupo de meninos que se enfrentaram e se acusaram: um
dizendo que o outro era rebelde, portanto teriam que ser exterminados; ali
poderiam ainda seguir suas lutas. Porém os dois grupos eram do exército e as
coisas se acalmara naquele momento, diferente do que se deu pouco depois quando
de fato encontraram um grupo que fora resgatado entre os rebeldes. Além de
Ishmael outros garotos haviam trazido baionetas. Dos dois lados. A luta foi
feroz. Não estavam mais na floresta, mas não era o local que definia desejos de
vingança; dois soldados do exército que tentaram apartar foram atacados e
tiveram suas armas tomadas. A luta somente terminou com a chegada de mais
homens do exército e deixou como saldo a morte de dois rebeldes e muitos
feridos, entre eles os soldados.
Levados para outro centro de
reabilitação, o Lar Benin, que ficava na periferia de Freetown, já começaram a
sofrer os efeitos da abstinência de drogas e ainda por estarem cheios de
energias e ódios e turbinadas por desejos de matar não respeitavam os
funcionários civis e não gostavam de receber ordens deles. Não foram
responsabilizados pela briga no centro de reabilitação; aliás, eram sempre
isentos de responsabilidade, pois todas pareciam recitar um mantra que irritava
Ishmael: não é culpa de vocês.
Irritados e sofrendo com a
abstinência de drogas arrumaram confusão e agiam sem ser reprimidos; viviam da
maneira que desejavam; vendia materiais; batiam nos moradores locais que
passavam próximo do centro de reabilitação para buscar água, até que estes não
passaram mais por lá. Pegavam medicamento na enfermaria para tentar amenizar os
desejo por drogas. Brigavam sem motivos aparentes, destruíam móveis. Agrediam
de forma violenta os funcionários, que no dia seguinte somente dizia: não é
culpa de vocês. Isto irritava ainda mais os meninos. Certo dia começaram a
quebrar os vidros das janelas; Ishmael sem saber o porquê começou a quebrar com
as mãos, isto o deixou com muitos ferimentos que o fez ter de ir a enfermaria e
onde tem contato mais próximo com a enfermeira que seria muito importante em
sua recuperação psicológica; Esther seria, enquanto ele no Centro de
Reabilitação, muito próxima a ele, tanto que em certo momento passa se
considerar como uma irmã mais velha. Após o atendimento foi dito que teria de
voltar no outro dia para fazer curativo, mas no mesmo dia foi acometido de
enxaqueca tão intensa que desmaio e teve de ser levado de volta ao
mini-hospital do centro de reabilitação. Quando acorda se levanta descarrega a
raiva ao jogar na parede um copo de água.
Uma forma de abrir caminho para o
intimo dos meninos foi dar presentes e coisas que gostavam; coisas que se
descobriam nos consultórios e na sala de aula; assim Esther deu um Walkman com
fitas de rap para Ishmael. O menino começou a contar algumas histórias e
pesadelos para a enfermeira. Sua ligação ficou tão forte que ansiava pela
presença da “irmã mais velha” e falar sobre reggae e rap; letras e músicas e
foi através da música que começou a conquistar equilíbrio e vencer os
pesadelos. Foi através da ação das pessoas que diziam a frase que o irritava
que passou a acreditar; mais que simples palavras “isto não é culpa sua” e
passou a pensar que foi o tom verdadeiro na voz de Esther que fez aquilo
finalmente começar a penetrar na minha cabeça e no meu coração (p. 160).
Um certo dia alguns visitantes da
Unicef iriam visitar o Lar Benin e foi pedido aos meninos que preparassem
performances para os visitantes. Ishmael recitou Júlio César e atuou em
uma enquête de hip hop que havia preparado (p. 163). A boa impressão
deixada pelos meninos levou a ser elogiados pelo diretor do lugar, Sr.
Kamara, que o convidou para ser um
porta-voz da instituição.
No sexto mês no Lar, a única pessoa
que conheceu na infância, Mohamed foi para o Centro e pode reencontrar uma
conexão com o passado; na mesma época Leslie, um funcionário da Unicef, foi até
ele e disse que tinha tentando encontrar algum parente, mas não tinha
encontrado ninguém; o menino falou sobre um tio, irmão de seu pai, que vivia em
Freetown: tio Tommy, um carpinteiro. As poucas informações que passou não eram
suficientes para se encontrar uma pessoa, mas Leslie conseguiu e levou o tio
até o menino.
Após algumas semanas de contato e
ser bem recebido pela família do tio foi viver com eles. Passado algum tempo
foi convidado por Leslie a ir a uma entrevista onde se iria selecionar dois
garotos para ir a Nova York participar de um evento. Ishmael foi selecionado e
lá pode falar ao mundo sobre a vida de ser menino-soldado. No evento conheceu
Laura Simms que se aproximou dele de forma definitiva, mesmo ele tendo voltado
par Serra Leoa continuaram mantendo contato com a mulher.
Embora tenha passado parte de sua
vida fugido de guerras e ter sido resgatado do front a luta o alcançou
novamente. Em meio a mais uma revolução Freetown foi assediada e foi tomada por
protesto e lutas; novamente escassez, novamente ameaças; novamente tiros e
mortes. Em meio ao pior momento das lutas seu tio ficou doente que sem médicos
remédios não resistiu. Mais uma perda para o menino.
Temendo ser reconhecido por soldados
tomou mais uma vez o caminho da fuga, pois não queria voltar à guerra. Com
dinheiro que recebia de Laura, que posteriormente o adotou, foi em uma fuga
perigosa para Conakry, capital da Guiné; apesar dos problemas e dificuldades
conseguiu chegar a embaixada de Serra Leoa no país vizinho onde termina seu
relato para, posteriormente, seguir viagem e passar a viver definitivamente nos
Estados Unidos.
Difícil tentar entender e repassar
uma história tão marcante vivida em uma realidade tão brutal que supera em
muito a ficção. Porém, Ishmael Beah, mais que sobrevivente de um mundo
revirado, é exemplo claro de que a vida é sempre mais forte que tudo. Sobrevier
a qualquer custo; vencer traumas físicos e psicológicos; ser exemplo de
resistência, não por ter pegado em armas, mas por as ter deixadas e entender
todo um contexto que de fato nem ele e nem um dos outros milhares de meninos
tinham culpa; todos eram vítimas de um sistema nefasto que somente se importam
com poder e lucros, no caso de Serra Leoa advindo principalmente dos diamantes,
que poderiam ser importante fonte de divisas para a sociedade em um país miserável,
mas que de fato se torna uma verdadeira maldição. Não por acaso o
revolucionário Foday Sankoh toma a região produtora; e não por desejos de se
constituir uma nação melhor que aliados o apóiam. E para manter seus planos, o
revolucionário faz uso de quem pode usar e paga com o salário do vício; da
mesma forma as forças oficiais agem mantendo um exército maltrapilho e viciado
em drogas e violências; sempre excitados por discursos de ódios e medos; sempre
sob tensões e pressões extremas.
Mas se por um lado há os que fazem
de tudo para se manterem soberanos, por outro sempre aparecem as pessoas que
realmente buscam por algo positivo; assim, se houveram pessoas que levaram
Ishmael à queda como ser humano, por outro houveram pessoas que foram ao
resgate da criança entorpecida para trazê-la de volta à vida.
Ishmael teve um final feliz,
daqueles que se vê em ficção, mas ele é somente um em meio às realidades que
pululam banhadas em sangue e sustentadas por drogas e ódios, sem saber de fato
porque e por quem lutam e morrem. Sem saber que a culpa não é deles.
Serra Leoa
Pequeno país localizado na África Ocidental com um território de 71.740
km2. A capital e principal cidade do país é Freetown. Faz fronteira
com a Guiné ao norte, leste e oeste e Libéria a sudeste, sendo que seu litoral
é banhado pelo Oceano Atlântico. A língua oficial é o inglês, que convive com
outras línguas nacionais importantes, como o mende e o temne. Com uma população
de cerca de seis milhões de habitantes (estimativa de 2016) a maioria dos
leoneses, cerca de 60% seguem a religião islâmica, com 10% de cristãos e o
restante de adeptos de religiões tradicionais africanas.
Os contatos europeus com Serra Leoa estão entre os primeiros na África
Ocidental. Em 1652, os primeiros escravos na América do Norte foram trazidos de
Serra Leoa para as ilhas ao largo da costa sul dos Estados Unidos. Durante os
anos 1700 havia um próspero comércio de escravos vindos de Serra Leoa para as
plantações da Carolina do Sul e Geórgia, onde a habilidade destes com o cultivo
do arroz tornou-se particularmente valiosa.
A 27 de abril de 1961, Serra Leoa, que era dominada pela Inglaterra,
torna-se independente, com Sir Milton Margai como primeiro-ministro, que e
reeleito nas eleições do ano seguinte.
Após décadas de diversos golpes e muitas mudanças no cenário político uma
terrível guerra civil segue-se entre 1991 e 2002, deixando mais de 50000
pessoas mortas, e acaba por misturar-se com a outra guerra civil que ocorria na
vizinha Libéria, onde o corrupto líder Charles Taylor colabora com o seu colega
leonense, Foday Sankoh, no tráfico de armas, drogas e diamantes, promovendo a
corrupção e dilapidando o estado de forma inédita. Com o fim da guerra, a luta
é para reconstruir o estado, um dos mais pobres do mundo, e impedir que este se
transforme em um narcoestado, ponte para que a droga colombiana entre na
Europa.[3]
Ismael Beah
Nasceu em Serra Leoa em 23 de novembro de 1980, mudou-se para os Estados
Unidos em 1998 e atualmente vive em Nova York. Formado em Ciências Políticas
pelo Oberlin College. É membro do Comitê de Direitos da Criança da ONG Human
Rigths Watch. Participa de diversos congressos em importantes instituições
como ONU e o Conselho de Relações Internacionais dos Estados Unidos, sobre
criança afetadas pelas guerras.[4]
Bibliografia
BEAH, Ismael,
Muito longe de casa; Memórias de um menino-soldado – Tradução de Cecília
Gianetti; Ediouro; – Rio de Janeiro/RJ – 2007
Infoescola:
http://www.infoescola.com/africa/serra-leoa/
[1]
RUF (Revolutionary United Front) – Frente Unida Revolucionária; Grupo
revolucionário liderado por Foday Sankoh, que aliados com forças estrangeiras
inicia a guerra em 1991 em que Ishmael Beah
tomaria parte entre 1992 e 1995.
[2] Referência à
musica de Bob Marley que, segundo Ishmael Beah, é devido à expressão utilizada
antes da guerra onde as pessoas levantavam um polegar por amor ao reggae.
[3] Fonte:
http://www.infoescola.com/africa/serra-leoa/
[4]
Fonte: BEAH, Ismael, Muito longe de casa; Memórias de um menino-soldado – Tradução
de Cecília Gianetti; Ediouro; – Rio de Janeiro/RJ - 2007
(AEM, 2017)
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