sábado, 24 de novembro de 2018

O LEGADO DE JACOB BURCKHARDT



Jacob Christoph Burckhardt (Basiléia, 25 de maio de 1818 — Basiléia, 8 de agosto de 1897) foi um historiador, filósofo da história e da cultura.

  
I

O fato de na introdução de “Os Usos das imagens”, E. H. Gombrich[1] (1909 – 2001), usar um pensamento de Jacob Burckhardt que foi narrado por Heinrich Wölfflin[2] (1864 – 1945) mostra, através desta forma de transmissão a força da influência do historiador suíço sobre sua área de pesquisa, em particular no que se refere à arte. Enfim, temos dois historiadores lembrando o legado e a própria forma de trabalho dele; ou, o seu legado.

Nesta mesma introdução Gombrich analisa o fato como o mestre suíço entendeu, em pleno século XIX a importância do mercado no sistema de atuação dos artistas e da criação das artes[3]; fato este que denota a clara percepção e lucidez de Burckhardt. Mais a frente na mesma introdução o historiador austríaco que faz uma previa da descrição do que abordará na obra que apresenta, quando fala sobre o capítulo dois, diz que seguirá mais de perto os passos de Burckhardt, sem é claro, querer competir com o seu grandioso ensaio sobre retábulos...[4] Eis aqui um testemunho de Gombrich ao trabalho e a capacidade do historiador suíço.

O grande legado de Jacob Burckhardt, a arte como tarefas, como ele próprio afirmou, teve sua contribuição junto à cultura do Renascimento italiano, sendo inclusive a percepção deste período como época histórica identificado com ele[5], como afirma Cássio Fernandes na apresentação da obra “A História Pensada: Teoria e método na historiografia européia do século XIX” de Burckhardt. E todo este legado queria que fosse público, pois tinha a intenção, como se referiu com relação à quatro manuscritos (O retábulo de altar; O retrato na pintura italiana; Os colecionadores; As recordações sobre Rubens), de doá-los à Biblioteca Pública da Basiléia, onde todos teriam a condição de ler e consultar[6]. Esta junção de pesquisa e disposição de passar o que havia desenvolvido em anos de viagens através da Europa, principalmente pela Itália, mostra o caráter de formador do suíço, que aliado a potência de suas conclusões criou uma escola de arte-historiadores. Isto, mesmo pela discordância de Wölfflin, com relação à forma como viam as obras de Michelângelo[7], que de certa forma o excomungou da História da Arte durante o século XX, Jacob Burckhardt conseguiu se manter fundamental na cátedra que ajudou a consolidar, enfim, a cadeira de istória da Arte é tão necessária quanto outra, a partir do instante em que se reconhece a importância da arte na formação geral[8]. Até porque um dos períodos mais importante da história humana, a Renascença, tem em Burckhardt uma figura fundamental dentro do contexto de identificação deste período como bloco unitário[9].

Mas uma obra desta magnitude, estudar e apresentar a cultura renascentista, não poderia ser concluída sem muito esforço. E Burckhardt sabia disto; e de fato em vida somente conseguiu concluir e ver editada uma obra sobre a arquitetura do renascimento publicada em 1867 sob o título “A arte do Renascimento”[10]. Parece que para o autor de “A História Pensada” a arte é um ente superior e ele a define como uma maravilha, como um dom dos deuses e talvez este ente que deve tocar a interioridade do ser merece todo esforço, mesmo que seja o esforço de uma vida inteira. A arte deve ser pensada com profundidade; poderá ser vista como mero deleite, mas antes deve se estar ante ela com profundidade. Alguém que aprende o caminho de observar arte por uma relação mais intima ... aprenderão sem livros a conversar com elas em uma linguagem resolutamente individua[11]. Assim Burckhardt conduz seus trabalhos para produzir seu legado com pesquisa fundamentada, dialética e até mesmo com poesia, como mostra algumas passagens.

II

Burckhardt legou uma vasta obra em livros, textos e aulas. Criou a cátedra de História da Arte na Universidade da Basiléia em 1874, onde foi professor por quase vinte anos, deixando apenas com a aposentadoria aos setenta e cinco anos de idade, sendo substituído pelo ex-aluno Heinrich Wölfflin.
Entre suas obras destacam-se, além da Arte do Renascimento, já citada, A era de Constantino – O Grande (1853),  O Cicerone (1855),  A cultura do Renascimento na Itália,  o ensaio Os Colecionadores do Renascimento, as obras criadas como cursos e foram publicadas posteriormente Sobre o Estudo de História (1868-1869), História da cultura grega (1872).

            Além de historiador fundamental com relação à História da Renascença, Burckhardt também estudou e ensinou a cultura grega, esta que considerava chave para a compreensão do que ele mesmo denominava História da Cultura[12]. Vale citar que na introdução de um dos cursos havia a presença de Friedrich Nietszche (1944 - 1900).

            Sobre a cultura grega escreve em a História Pensada: A nossa tarefa, como nós a concebemos, é esta: fazer a história dos modos de pensar  e das concepções dos gregos e indagar quais forças vitais, construtivas, agem na vida grega[13]. E quando iniciava os estudos sobre a cultura grega já sentia o chamado para a História da Arte e foi nesta época que propõe a criação do curso na Universidade da Basiléia de forma que trocava suas aulas Pädagogiun por aulas de História da Arte, no que foi aceito e profere a aula inaugural em 06 de maio de 1874[14].

            Já neste principio o historiador suíço define os três objetivos para a formação em História da arte que são: Reconhecer uma autonomia ao estudo histórico do fenômeno artístico ...; conceber um método de estudo que permita orientar o percurso em meio à profusão de obras e artistas; desenvolver e refinar o conhecimento visual das obras de arte[15]. O criador da cátedra cria também o método; enfim, ele era provavelmente o único que poderia fazê-lo desta forma. Tinha o conhecimento em História, a percepção em arte e, sobretudo, a vontade de(o) fazer esta tarefa.

Burckhardt entende a obra de arte em duas vertentes: como objeto artístico em si e como um “testemunho” do ambiente que a gerou. O autor de A Arte do Renascimento[16] aqui também percebe que uma obra de arte está além de si mesma; além do próprio artista. Parece que Burckhardt entende uma obra de arte como a soma dos esforços dos artistas com o momento e circunstância em que foi criada somando-se a isto o desejo do comitente; portanto, vê a obra muito além dos pincéis e das tintas, dos cinzéis e das pedras.

III
Jacob Burckhardt também desenvolveu um método de apresentar a obra A pintura segundo os temas e as tarefas através do que chamou de gêneros como função de uma obra de arte em relação a um determinado contexto histórico cultural. Burckhardt dividiu as obras por temas e as organizou em capítulos desta forma didática; um sistema de ordenação que unia sincronia e diacronia[17].

Define a linha de tempo da cultura Renascimento como iniciada no período da vida Dante Alighieri (séc XIII) e finda no época do saque de Roma[18] (1527)

Já após a aposentadoria Burckhardt continua a produzir e desenvolver métodos de estudos para a História da Arte. E nesta fase que privilegia o conhecimento material das obras de arte, a maneira como tinha sido criada, colecionada e avaliadas; entendia a obra de arte como testemunho individualizado de um contexto histórico[19]. O autor tinha uma visão ampla que não queria perder nenhum aspecto das artes; queria que seu legado fosse pleno. E certamente o foi.

Se não conseguiu em vida concluir seu desejo de demonstrar plenamente a relação da arte e do artista com o comitente, relacionar a obra de arte em si com o momento intelectual do Renascimento, foi, contudo, “homenageado” por Aby Warburg[20] que o enviou a sua tese sobre as obras de Sandro Botticelli (1445 - 1510), o Nascimento de Vênus e Primavera, onde demonstrava a influência dos comitentes sobre as obras, sendo estas uma soma de desejos e conhecimentos de forma a definir como deveriam ser realizadas as obras. Não sendo, portanto, uma obra totalmente de Botticelli, pois a parte intelectual, como o conhecimento mitológico seria demonstrado por outra pessoa, não sendo uma criação, propriamente dita do artista[21].

O historiado suíço, através da bibliografia de Antonello de Messina mostra como os artistas influenciam-se. Pois, este artistas nascido na Sicília, passou por Nápoles e Flandres antes de chegar em Veneza e levar consigo influências, sobretudo da arte do retrato flamengo; em Flandres aprendeu a pintura a óleo. Foi na arte veneziana que Burckhardt identificou o retrato de gênero (fusão entre o retrato e a pintura de gênero)[22].

Pode-se notar, mesmo por um estudo pequeno sobre História da Arte o quanto Jacob Burckhardt foi um autor, pesquisador e pensador fundamental nesta matéria. Embora tenha centrado suas pesquisas na Renascença deixou uma escola, que por si só já seria legado imenso, mas não se pode deixar de mencionar seus esforços como pesquisador sobre todos os aspectos em torno das arte; uma visão que ia além da obra e do artista e chegava ao meio intelectual para usar em seus argumentos. Era o médium social, poético e humanístico[23] que fora realizado por Warburg.


Bibliografia

BURCKHARDT, Jacob C. – A História pensada – Teoria e Método na historiografia Européia do século XIX; Organização de Estevão de Resende Martins; Editora Contexto.

BURCKHARDT, Jacob C – O retrato na Pintura Italiana. Tradução de Cássio Fernandes;  Editora Unicamp;

GOMBRICH, E. H. - O uso das imagens: Estudo sobre a Função Social da Arte e das Comunicação Visual. Tradução: Ana Carolina Freire de Azevedo e Alexandre Salvaterra. Bookman. 2012


Notas


[1] GOMBRICH, E. H. - O uso das imagens: Estudo sobre a Função Social da Arte e das Comunicação Visual. Introdução.
[2] Wölfflin , Heinrich (Winterthur, Suíça, 21 de junho de 1864 - Zurique, 19 de julho de 1945). Escritor, filósofo, crítico e historiador da arte.
[3] Idem a nota 1
[4] Ibidem
[5] BURCKHARDT, Jacob C. – A História pensada. – Apresentação por Cássio da Silva Fernandes.
[6] BURCKHARDT, Jacob C – O retrato na Pintura Italiana. Prefácio à edição brasileira. Maurizio Ghelardi.
[7] BURCKHARDT, Jacob C. – A História pensada. – Apresentação por Cássio da Silva Fernandes. Wölfflin tinha uma visão diferente de Burckhardt quanto a obra de Michelangelo o que, provavelmente o levou a diminuir a importância do trabalho de seu mestre. Wölfflin disse da publicação dos escritos da última fase do mestre que “essas publicações póstumas foram recebidas com o devido respeito, ainda que no fundo tenham causada certa decepção”. Isto declaração
[8] BURCKHARDT, Jacob C. – A História pensada – Sobre a História da Arte como objeto de uma cátedra acadêmica (1874).
[9] Idem a nota 5.
[10] Ibidem a nota 5.
[11] Ibidem
[12] Ibidem s nota 5.
[13] Ibidem
[14] Ibidem
[15] Ibidem
[16] Ibidem
[17] BURCKHARDT, Jacob C – O retrato na Pintura Italiana – Apresentação: O lugar de O Retrato na pintura italiana do Renascimento na obra de Jacob Burckhardt – Cássio Fernandes.
[18] Saque de Roma, ocorrido em 06 de maio de 1527, foi um evento militar realizado na cidade de Roma, então parte do Estados Pontifícios pelas tropas rebeldes de Carlos V, imperador do Sacro Império Romano-Germânico.
[19] Ibidem
[20] WARBURG, Aby Warburg Abraham Moritz. (Hamburgo, 13 de junho de 1866 — 26 de outubro, 1929) historiador da arte. Criador da Biblioteca Warburg, atualmente sediada em Londres.
[21] Ibidem
[22] Ibidem
[23] Ibidem


(AEM, 2014)

A RENDEIRA - Johannes Vermeer


O artista

Vermeer (31 de Outubro de 1632 - 15 de Dezembro de 1675) nasceu na cidade de Delft, Holanda, filho de um comerciante que negociava com diversos produtos, entre estes, seda e obras de arte, tendo inclusive sido admitido na Guilda de S. Lucas[1] e travado relações com artistas como Balthasar Van Der Ast[2]. Acredita-se que tenha sido isto a fonte de inspiração de Vermeer para que este se inclinasse pela arte, pois pouco se conhece da vida do artista, que ao lado de Rembrandt foram os principais artistas do barroco holandês.
            Embora tenha conseguido reconhecimento em seu tempo, Vermeer produziu poucas obras, sendo que estas sejam em torno de pouco mais de trinta. De formação calvinista casou-se com Catharina Bolnes, mulher de formação católica, com quem teve quinze filhos. No inicio da vida de casados aparentemente não tiveram dificuldades financeiras, pois puderam sustentar sem dificuldades o crescente número de filhos, mas isto se deve, provavelmente, a boa situação da família da esposa. Mas esta boa condição se perdeu com o tempo, devido, talvez, ao elevado número de filhos. Ainda houve a abertura dos diques como forma de defesa pelos Paises Baixos, pela ameaça da invasão francesa, que inundaram terras que lhes eram fonte de renda. Isto teve um efeito devastador para o artista que adoeceu e sucumbiu em menos de dois dias.

Falsificações

            Não se sabe ao certo quantas obras Vermeer teria legado; atestadas são pouco mais de trinta, e parte da dificuldade de identificar suas obras, além da obscuridade de sua biografia, vêm de um outro artista holandês do século XX: Van Meegerem (1889-1947). Este artista, embora virtuoso, teria sido relegado pela história por ser considerado ultrapassado, mas usando de seu talento criou obras novas ao estilo Vermeer que vendia por altos valores como sendo autenticas do artista barroco. Sua farsa foi descoberta com o fim da segunda guerra, pois os aliados encontraram obras desconhecidas de Vermeer com líderes nazistas. Descobriu-se que estas haviam sido negociadas por Meegerem que foi preso por isto e seria julgado por traição e por apoiar os nazistas; provavelmente seria condenado à pena de morte por estes crimes. Para se livrar destas acusações Meegerem revelou que as obras eram pintadas por ele mesmo; isto, após provar o que dizia, pintando uma tela na prisão diante de especialistas, levou-o a condição de falsificador e foi condenado por isto, porém morreu em 1947 antes de cumprir a pena e deixando uma incógnita para História da Arte sobre as obras de Jan Vermeer.

 

Barroco holandês

Diferente do período Barroco nos paises católicos, que viviam sob a sombra pesada da Reforma e que tinha temas religiosos como principal inspiração, a Holanda protestante que vinha de recente libertação do julgo espanhol, vivia uma era de crescimento econômico e intelectual. Havia uma certa “liberdade para se expressar”, o que atesta a obra A Lição de Anatomia do Dr. Tulp - 1632 de Rembrandt; obra impensável em paises católicos.
            Na Holanda, este período foi marcado também por retratar com realismo cenas e personagens comuns, até pelo que se pede na religião protestante; distancia-se da nobreza e parte também para a pintura de paisagens e natureza-morta.
Nas cenas de interiores realistas Vermeer é o grande mestre holandês.

As Obras

As obras de Vermeer são marcadas pelos signos e críticas à sociedade da época. Mostram um enquadramento geométrico sempre com linhas horizontais e verticais. Contrastes de claro e escuro, característico do barroco, são marcados por personagens com faces e detalhes do corpo e roupas iluminadas; elementos chaves para interpretações da obra são iluminados também. Destaco neste ponto às mãos de Cristo na obra Cristo na Casa de Marta e Maria[3]. Em contrastes à luz as obras apresentam fundos escuros envoltos, por vezes, em mistérios, “denunciando” os pecados de sua época: preguiça, amores secretos, sedução, embriagues, etc. Obra clássica, A Menina de turbante[4] (obra que inspirou o filme Moça com Brincos de Pérola[5]), traz este contraste e a maestria do artista ao trabalhar cor e luz e a sensualidade.
Mas a virtude também existe na obra de Vermeer que pode ser vista em A Leiteira[6] e A Rendeira onde pode se ver mulheres centradas em seus afazeres domésticos. Outra virtude, a sabedoria, pode ser vista nas obras O Geógrafo[7] e O Astrônomo[8]; atento à ciência que nascia, Vermeer mostra ser um homem de seu tempo que vislumbrava o futuro.
Duas paisagens de Delft, são os legados de Vermeer para sua cidade natal. Rua de Delft[9] mostra também enquadramento e geometria. Aqui a luz irradia no exterior das construções e nos personagens simples fechados em seus afazeres. Mas os interiores são escuros como se a esconder os segredos dos moradores que se mostram virtuosos. Vista de Delft[10], considerada uma das dez melhores obras de arte de todos os tempos por críticos ingleses nos anos oitenta, traz também o virtuosismo do artista em seu trabalho de luz e sombra, mas aqui a luz aparece em primeiro plano, iluminando a areia e os poucos personagens à beira do rio e no plano de fundo dando destaque à uma torre de uma igreja, deixando a sombra em um plano central da cidade. Os prédios envoltos em pouca luz refletem sua escuridão nas águas, mas a torre iluminada não aparece, esta que está quase no mesmo plano da torre da esquerda que é refletida no rio.

A Rendeira

O virtuosismo de Jan Vermeer eu já conhecia pelas fotos de suas obras e por comentadores de seus trabalhos, porém, ao estar ante a obra A Rendeira, obra de riquíssimos e precisos detalhes, e descobrir que esta não era maior que a capa do livro que tenho do artista me surpreendeu de fato.
Esta obra diferencia-se de outras obras de Vermeer que mostram personagens com os signos dos vícios, esta, assim como A Leiteira, mostra outro aspecto das mulheres: a virtude. Nesta obra a luz irradia na personagem e mesmo no plano de fundo. As sombras aparecem em um canto pequeno, mas mesmo aí surgem cores e luz.
O rosto baixo, mostrando concentração, esconde os olhos, mas estes claramente estão fixos nas mãos e no trabalho, o que parece ser o único pensamento da mulher. Uma trança no cabelo parece coroar a virtude.
Até mesmo os tecidos trabalhados estão envoltos em luz; assim devem ser os propósitos, um claro contraste com a obra Jovem Adormecida à Mesa[11], obra, cujo pecado capital da preguiça aparece, isto após, aparentemente a mulher ter bebido vinho; uma garrafa iluminada faz o elo com a personagem, sugerindo uma provável embriaguez; nesta obra o ambiente está pouco iluminado e a falta de luz acentua-se sobre a cabeça da jovem.
Em A Rendeira os tons amarelos e ocres característicos do artista também atestam a obra. Nesta obra não há quadros nas paredes, portas entreabertas e janelas que caracterizam outras obras de Vermeer; também não há objetos que denuncie falhas morais, tais como cartas, taças e garrafas; há apenas agulhas e tecidos. A parede do fundo é mais um elemento a cercar a mulher, fechando-a em si mesma. As mãos aparecem iluminadas como as mãos do Geógrafo e as mãos de Cristo (Cristo na Casa de Marta e Maria).
Nesta pequena obra, Vermeer parece querer colocar toda a grandeza da virtude, todos os detalhes que parecem simples, mostram a sutileza e a determinação virtuosa da mulher. Ou como a mulher deveria ser e agir.



 A Rendeira
24,5 x 21 cm
1669-70
Óleo S/ Tela
Museu do Louvre - Paris/França

   
Bibliografia

SCHNEIDER, NORBERT. Vermeer, A obra completa. Alemanha: Taschen, 1997. Tradução de Souza de Almeida, CARLOS. Portugal, 2005.

Notas


[1] Guilda de S. Lucas: mais famosa corporação de ofício de artistas européia que homenageia o evangelista São Lucas.
[2] Balthasar Van Der Ast. Pintor holandes considerado um dos pioneiros da natureza morta.
[3] Cristo na casa de Marta e Madalena - 1655. Galeria Nacional da Escócia – Edimburgo/Escócia.
[4] A Menina de Turbante - 1665. Museu Mauritshuis – Haia/Holanda.
[5] A Moça com brinco de pérolas (Girl with a Pearl Earring) - 2003. Filme inglês dirigido por Peter Webber.
[6] A Leiteira – 1657-58. Rijksmuseum, Amsterdã/Holanda.
[7] O Geógrafo – 1668-1669. Städelsches Kunstinstitut und Städtische Galerie, Frankfurt/Alemanha.
[8] O Astrônomo – 1668. Museu do Louvre, Paris/França
[9] Rua de Delft – 1657-58. Rijksmuseum, Amsterdã/Holanda.
[10] Vista de Delft – 1660-61. Museu Mauritshuis – Haia/Holanda.
[11] Jovem adormecida à mesa – 1657. Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque/EUA.

(AEM, 2013)

domingo, 18 de novembro de 2018

ARTE E IMAGEM COMO CONSTRUÇÃO DE MEMÓRIAS FAMILIARES DA PÓS-DITADURA ARGENTINA


Levando novas perspectivas para discutir histórias particulares, mas com o intuito de discutir a própria história da Nação, fotógrafos argentinos buscam nas arqueologias pessoais uma forma de resgate e questionamento do passado, usando para tanto, imagens como documento social; buscam também uma forma de remissão dos desajustes terrorista praticado por um Estado totalitário; Estado que ataca e fere profundamente o próprio povo.
Três décadas de ausências são trazidas a tona, mas tentando suprir com novas poesias as lacunas deixadas pelos anos de terror. Ou seja, uma nova percepção para discutir dramas eternos.
Rodrigo Montero[1], no texto em que se baseia meu estudo, considera que através dos tempos as imagens ocuparam papel fundamental na constituição e consolidação de memória da ditadura[2]. Por isto traz à reflexão trabalhos de alguns fotógrafos que buscaram novas formas de trazer à memória pessoas, situações e histórias que foram silenciadas e que deixaram uma sensação de vazio; sobretudo, sobre as vidas que foram interrompidas; histórias que foram silenciadas por forças não naturais.
Não buscando tão somente imagens com o simples intuito de rememorar momentos os artistas argentinos foram a busca de uma nova memória; um novo resgate a partir do individuo, mas que quer aprofundar no drama coletivo e discutir e rebater os discursos de conciliação e esquecimento, promovido por alguns setores políticos e sociais.
Os dramas são trazidos a vida como se ainda estivessem presente, aliás, os dramas nunca foram passados; os dramas se perpetraram na ausência dos que foram mortos ou talvez até mais intensos nos que desapareceram. Estranho olhar o trabalho do fotógrafo Gustavo Germano onde confronta fotografias antigas com fotografias registradas por ele no mesmo no local onde personagens do registro antigo parecem estar presente como fantasmas em forma de memórias. Aos personagens que ainda vivem somente com as lembranças fica um estado de solidão que é nítido na imagem 1, onde o sorriso da mulher claramente se perdeu em algum momento. Certamente a falta de respostas dos porquês dão mais dramaticidade às histórias intimas e por isto o surgimento de produções e ensaios visuais centrados na perspectivas intima familiar.
Figura 1[3]
Gustavo Germano

Montero argumenta que para estas novas reivindicações de familiares das vítimas está o novo contexto político e judiciário e de movimentos de direitos humanos. Outro ponto importante apontado está no fator biológico, uma vez que os filhos das vítimas da ditadura argentina se tornarem adultos e buscam pelo resgate do que foi interrompido em suas vidas de forma traumática. E os filhos se vêem não apenas em drama solitário e silencioso, mas ao contrário, se percebem em meio a tensão entre a memória social e a memória familiar. Fica evidente a tensão entre o público e o privado. Enfim, há uma história comum que toca milhares de pessoas que se identificam nos pontos comuns sempre pleno de dores e ausências advinda da mesma causa: o terrorismo promovido pelo Estado.
Assim como tantas outras famílias, a de Lucila Quieto também foi mutilada. A fotógrafa, filha de Carlos Alberto Quieto, não conheceu o pai que desapareceu cinco meses antes de seu nascimento em 1977. O lapso de meses impediu que houvesse qualquer registro de pai e filha juntos. Tão somente mais um álbum de família onde a ausência se faz por causas não naturais; mais um álbum de memórias que nunca existiram. Porém, Lucila resolver suprir esta lacuna em seu álbum (figura 2). Mais que suprir uma falha, Lucila mostra todo o trauma advindo da memória ausente e entra nas fotografias de Carlos Alberto.
A fotógrafa projeta a fotografia do pai em uma parede e impõe a própria presença em uma nova fotografia. O resultado significou  o nascimento da Arqueologia de la Ausencia, projeto realizado entre 1999 e 2001. O projeto foi além, com Lucila convidando outras pessoas a participarem. Ao todo ela fez trinta e cinco fotografias em preto e branco onde faz surgir os encontros impossíveis. É o resgate possível, mas que quer mais. Quer ser um documento. Parece querer dizer o que de fato foi aquele momento histórico; momento de rasgos profundos para as pessoas comuns que se viram sem poderem deixar suas memórias; seus registros.
Figura 2[4]
Lucila Quieto

Algumas das pessoas queriam que a projeção fosse feita em seus corpos como se tivessem dando um corpo, um corpo possível, para a memória criada. As imagens que mesclam dois tempos tão distantes criam, então, um tempo onírico, uma temporalidade própria na qual pode acontecer a cerimônia do encontro. Duas realidades fundidas em um instante surreal que somente existe de fato nas emoções de quem o vive o momento do registro e que se perpetua nas memórias que não aconteceram, mas que passaram todos os anos como sendo potencialidades de terem sido fato concreto, embora se saiba dos trágicos destinos.
Destaca-se no trabalho de Quieto o fato de ela não buscar disfarçar as montagens e seus processos, mas ao contrário, ela parece querer mostrar os cortes, como se a mostrar os traumas que as imagens representam. Cria-se um corpo traumático em uma memória de ilusão. Assim as fendas não se fecham, pois não é isto que se busca; enfim, longe de querer enganar com montagens digitais, Lucila esfrega na nossa cara a artificialidade da cena. Nos álbuns que passam a ser forjados por Lucila levam-se as momentos que se identificam com as melhores memórias dos fotografados, pois, enfim, são somente estas que são registradas.
Assim como Lucila Quieto, Gustavo Germano teve seu drama pessoal. Germano teve um irmão seqüestrado e desapareceu. A partir de sua história partiu para pesquisar outras histórias e buscou uma poética de contrastes. Se Quieto queria reunir as histórias, Germano quer tornar evidente o trauma. Em dípticos coloca lado a lado duas construções onde a ausência de personagem(ns) na imagem recente traduz o drama da memória não vivida. A melancolia, a solidão ou simplesmente o vazio, fica como documento atestando a ruptura na história. Uma tensão entre desejo e impossibilidade que funciona como um manifesto visual além da própria imagem.
Maria Soledad Nívoli, que assim como Lucila Quieto, também não conheceu o pai, desaparecido em 1977, quando ela tinha quatro meses.  parte por uma poética mais próxima a Germano onde ela mostra a ausência não na imagem em si, como fez o fotógrafo, mas em uma “auréola quase mística”, pois em seus dípticos (ex. figura 3) uma foto é registro de seu pai, outra é o registro dela no mesmo local, como a seguir os passos dele; parece querer encontrá-lo em algum lugar do passado ou quem sabe criar uma conexão entre os dois tempos. Contudo, fica somente um sentido de continuidade.
Imagem 3[5]
Maria Soledad Nívoli

Além destes três casos citados, outros artistas também desenvolvem trabalhos na produção visual com temática sobre os desaparecidos no regime ditatorial argentino, tais como Clara Rosson, Cládua Bettina, Julio Pantoja e Inés Ulanovsky. Este fenômeno é corroborado com a forte presença em mostras em centros culturais e museus.
Rodrigo Montero considera que estes trabalhos dos fotógrafos argentinos inserem-se no contexto contemporâneo e insere-se na fotografia centrada em imagens casuais de indivíduos, de famílias e de grupos que alguns teóricos definem como “estética da intimidade”, porém, a estéticas dos argentinos distanciam-se de artistas de reconhecimento internacional, cita o exemplo da americana Nan Goldi e do inglês Richard Billingham que trabalham a temática da intimidade, mas que por razões de distanciamento de regiões de genocídios, de terrorismo de estado e desaparição de pessoas como sistemática de extermínio não passam pelas questões em nível de militância, como agentes sociais. Nos trabalhos argentinos, pode-se pensar que estão além do simples mostrar e o ver, eles vão a busca de novas percepções e reflexões sobre o passado. Lucila, Gustavo e Maria Soledad querem uma nova matriz para suas memórias que se confundem com as memórias de tantos outros e com isto partem para um sistema comunicacional aberto e subjetivo que supera as limitações do sistema verbal. Estas produções estão sim incluídas no sistema que se reconhece como arte contemporânea, mas, como afirma Montero, mais que conceber a partir de inteligências artísticas, busca-se, sobretudo, reflexões político-sociais.


Bibliografia
MONTERO, R. Arte e Imagem como construção de memórias familiares da pós-ditadura argentina.
  


[1] Rodrigo Montero: Mestre em História, Teoria e Crítica da Arte pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2013). Formado em Artes Visuais com ênfase em História, Teoria e Crítica da Arte pelo Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2010)
[2] Montero, R. Arte e Imagem como construção de memórias familiares da pós-ditadura argentina.
[3] Fonte: http://www.gustavogermano.com/
[4] Fonte da imagem: http://weblogs.clarin.com/itinerarte/2007/04/09/historia_de_una_doble_profanacion/
[5] Fonte da imagem: http://image.slidesharecdn.com/corporalidadymemoria-sep09resumenparass-100128044843-phpapp01/95/corporalidad-y-memoria-en-ensayos-fotogrficos-20-728.jpg?cb=1265263570


(AEM, 2016)

sábado, 17 de novembro de 2018

O ESTRANHAMENTO DE WINCKELMANN



I

Quando estive ante a obra Le Bassin aux Nynpheas[1] de Claude Monet (1840 - 1826) senti algo muito denso, muito forte; não sei exatamente como descrever, mas foi um tipo de impacto que me tirou da passividade, pondo-me, talvez, em uma espécie de diálogo com a obra, ou com a própria alma do artista. Não eram somente o desenho, as cores, técnica que me tocaram. Era algo mais. Antes de entrar na sala onde estava esta obra já havia percorrido um corredor admirando Renoir, Van Gogh, Manet, Cézanne e outros impressionistas e pós-impressionistas, mas mesmo após tantas obras, algumas icônicas, fui “abatido” por aquele Monet.
            Isto me faz pensar que, atualmente, quando os grandes artistas do passado e suas obras são levados para grandes museus e são “idolatrados”, provavelmente haja um quê deste estranhamento que nos arrebata, e nos leva a questões de como entender os porquês disto. Creio que nunca se chegou a alguma solução para esta questão; o que vemos são explicações sobre virtuosismo, técnica, materiais, momento histórico, discussões sociais e sobre ética, etc. Mas estas argumentações não explicam o “estranhamento”.
            Provavelmente muitas das questões naturais da História da Arte e da História Geral justificam o porquê das teorias de Winckelmann e dos argumentos que ele utilizou, mas este certo “estado de paixão”, de adoração, que viveu com a arte e cultura grega, deixa transparecer este quê que está além das questões comuns.
            Porém, quando se pensa nas questões naturais não se pode deixar de tirar a razão dele, pois é certo que o povo que foi berço da arte e cultura do ocidente, o foi de forma categórica. Em um curto espaço de tempo da humanidade esta civilização legou o próprio sentido de ser e pensar de seu tempo e do futuro. Seus pensadores e artistas ainda são discutidos e festejados, mesmo passados milênios.
            Pode-se afirmar que o historiador alemão fez justiça ao colocar a arte grega acima da romana, pois esta última surgiu a partir daquela e, é certo que muitas obras romanas, foram executadas por artistas gregos. Oras! Roma não é outra coisa que uma filha da Grécia. Os próprios romanos se orgulhavam de sua ascendência. Winckelmann não fez outra coisa que trazer a ordem das coisas, porém, provavelmente ele não tinha como entender um outro fator que é fundamental em um artista, além de produzir uma obra para agradar e instruir[2], um artista quer se expressar, o artista necessita se expressar, seja em qualquer época ou região em que viva. Uma obra de arte não é outra coisa, senão fruto da expressão da alma do artista, que pode ver da forma que desejar o modelo que utiliza, seja para produzir uma musa, um deus pagão ou um ícone cristão.

II

            Winckelmann somente vê por arte clássica a grega, enquanto na Itália e no oeste da Europa a cultura romana seria a influência e inspiração para a Renascença e, posteriormente, para o Barroco e para todas as outras épocas.
            Porém, o historiador alemão não faz seu estudo e suas teorias embasadas somente na arte, mas na própria maneira de ser do povo grego. Ele vê a natureza dos antigos superior à natureza de seus contemporâneos. Mas esta natureza de espírito superior que  vislumbra nos gregos não pode ser atingida em seu tempo, portanto, um artista somente poderia atingir uma obra superior se buscasse uma natureza semelhante aos antigos. Com isto ele julgava não ser possível produzir obras semelhantes aos gregos sem ser a partir de estudo das obras destes.
            E como grande exemplo utiliza a escultura Laocoonti e seus filhos (figura 1) que será para ele uma regra perfeita de arte[3]. E para poder ver a essência desta e de todas as obras gregas é necessário ter uma percepção tal qual a que se conhece um amigo[4]. E foi esta a percepção quando Michelangelo[5] (1475 – 1564) estudou as obras dos antigos gregos; assim pensava Winckelmann. Então, não basta apenas olhar as obras, mas saber vê-las. Enxergar além da matéria e ver as dores e forças; em outras palavras sentimentos e energias expressas; é saber ver em Laocoonti sua alma magnânima e ponderada[6]. Enfim, ver que somente um grego moldado pela cultura da disciplina, da beleza e da ginástica teria nobreza para ser modelo de resignação e representar uma essência superior, que poderia, mesmo ante a uma morte imposta por vingança de um deus, ter a nobreza de alma necessária para enfrentar seu destino, seria como um Leônidas nas Termópilas.
                                                   
  Figura 1
Laocoonti e seus filhos
Atribuído a Agesander, Athenodoros e Polydorus
Museu do Vaticano

            Parece que Winckelmann não levava em conta a própria essência de Michelangelo, esta que o levou a produzir obras que, certamente igualaram e superaram muitas esculturas gregas, seja em virtuosismo, seja em natureza de espírito, mesmo vivendo em plena Florença renascentista, que o historiador alemão certamente considerava inferior.
            Na Florença renascentista não havia nenhum modelo que pudesse ter a natureza de um jovem espartano que desde os sete anos dormiu no chão e desde a sua infância foi treinada na luta e em natação[7]. Talvez não houvesse um jovem de natureza tal qual a do espartano, mas um artista pode superar com sua visão, pode em uma percepção mais elevada superar e criar o ideal. Talvez Winckelmann pensaria diferente se soubesse que todo pintor usa seu próprio sangue para pintar[8]. O pensamento de Heinrich Wölfflin (1864 - 1945) que veio dois séculos depois das Reflexões Sobre a Arte Antiga mostra o fundamento do artista quando produz, isto independente de época e região.
            Se Winckelmann aceitava Michelângelo como um artista com talento capaz de copiar os gregos, não via o mesmo em Bernini[9] (1598 - 1680), artista barroco que considerava que se devia produzir arte copiando diretamente da natureza, pensamento inaceitável para o historiador, pois para ele somente os gregos souberam fazê-lo. Mas não apenas o artista grego era superior, mas a própria natureza grega o era; então, Bernini não poderia produzir uma obra de arte verdadeiramente grandiosa copiando direto de uma natureza inferior.
            É certo, porém, que o Êxtase de Santa Tereza[10] (Figura 2) esculpida entre 1645 – 1652 esta longe de ser uma obra inferior. A escultura, com fundamento religioso católico traz uma sensibilidade impressionante, sobretudo na figura da face de Santa Tereza, onde se pode ver e sentir toda expressão do êxtase da santa retratada.
                                                   
  Figura 2
Detalhe da obra Êxtase de Santa Tereza
Gian Lorenzo Bernini
Igreja de Santa Maria Della Vitória - Roma
           
Mas nada importava para o historiador alemão que parece ter mesmo encontrado aquele estranhamento na obras e cultura grega e dirá que será preferível que se estude o Antinous Admirandus[11] ou Apolo do Vaticano[12] que seguir o conselho que era dado por Bernini a seus alunos que dizia para se estudar preferencialmente a natureza no que ela mostra de mais belo, mas para Winckelmann este não era o caminho mais curto[13] que seria estudar os gregos. Se Bernini ensinava a seus alunos a estudar a natureza, por sua vez ele próprio encontrou o encanto da Vênus de Médicis[14], sendo esta que lhe mostrou a natureza da beleza; ao estudar a Vênus ele teria aprendido a verdadeira beleza e, portanto, sabia onde ver e encontrar o belo na natureza; ele havia aprendido a ver o belo com a Vênus. Este era o caminho natural: aprender com os gregos e aplicar em seu tempo. Copiar direto da natureza é fazer somente retratos, como os holandeses, copiar dos gregos leva ao belo universal[15]. Neste ponto Winckelmann tornam claras suas teorias. Aqui ele mostra que de fato não é a obra em si que é o importante, mas a condição natural da cultura grega.
Então podemos dizer que de certa forma não era a arte grega superior, mas a natureza da civilização. Será que Winckelmann não teria se confundido e legasse suas obras sem ele mesmo ter compreendido suas idéias? Na introdução à obra Reflexões Sobre a Arte Antiga, Gerd A. Bornheim diz que Winckelmann não foi de fato compreendido pelos artistas alemães que acabaram por seguirem por um academismo e o culparam por isto. O autor das Reflexões Sobre a Arte Antiga parece que não tinha o intuito de fazer a arte ser acadêmica ou não, mas fazer surgir uma renascença grega em todos os aspectos e isto deveria ser feito inspirado na escultura grega, que era a mais forte herança ainda viva em seu tempo.

 III
Parece-me que Winckelmann usou a materialidade das esculturas para encontrar a alma e não percebeu que a única coisa universal é a própria alma; se há um belo universal, este não será expresso nos corpos, mas na essência do ser humano. O que ele buscava era um ideal que era traduzido nas obras primas antigas que ele não conseguia ver em obras de outras épocas ou povos; ou somente encontrou em Michelangelo, o único que soube ver a beleza como os gregos viam, assim acreditava o historiador alemão.
Se Winckelmann tinha uma visão particular e uma expectativa quanto à arte grega estas de fato não são difíceis de se entender, pois as obras gregas são realmente de grande beleza e inspiradoras. É certo também que a arte sempre inspira a arte e a vida. Neste contexto então, devemos dar razão em parte ao historiador que, antes de tudo foi um grande aficionado pela cultura grega e penso que ele está certo quando coloca a arte grega acima da romana.
Mas quanto ao ideal grego que ele prega, talvez seja mais um ideal dele mesmo que encontrou eco na antiga Grécia; este ideal o levou para a Itália, pois lá estaria mais próxima de sua terra dos sonhos que, é certo já não existia mais há quase dois milênios. Provavelmente esperava encontrar lá a arquitetura, esculturas, pinturas e desenhos que o fariam mergulhar em seu mundo. Este sonho fez com que abandonasse sua própria terra e buscasse fuga no mundo de seus ideais, mas jamais chegou a seu destino, permanecendo na Itália, o mais próximo que se parecia com o que buscava.
Talvez ele não tenha entendido que os mundos são perfeitos quando não são vividos de fato, mas quando somente vivem como ideal. Isto pode ser pensado pelo fato de que as obras gregas retratavam um povo que buscava se preparar para a defesa de suas terras e sua cultura contra invasores estrangeiros; enfim, os Persas estavam sempre como uma sombra sobre suas cabeças; além das próprias lutas internas. Mas, por outro lado vale lembrar que este povo legou a filosofia e as questões mais profundas até então formuladas em nossa civilização. Enfim, um misto de força e sabedoria. Winckelmann havia acertado onde endereçar seu mundo ideal irrealizável.
Como fundamento de História da Arte ele é válido pelo pioneirismo, e deve-se, contudo, deixar seus argumentos apenas como um canto poético a mais nobre cultura que já existiu.
Quanto aos Berninis e os demais artistas barrocos e também os renascentistas e todos os demais fica a certeza de que a arte não está presa a uma época ou região, mas como divisa da alma humana, que a produz da forma que sente; alma humana, esta a única natureza verdadeiramente universal.
A partir disto tudo é possível fazer uma reflexão sobre como Winckelmann veria a arte moderna.
Sabendo-se que a arte moderna tardou a chegar a Alemanha e que os nazistas criaram o conceito de arte degenerada penso que Winckelmann associar-se-ia com os contrários a nova arte, aliás, se ele condenava o barroco é certo que o que viria depois seria condenável também. Provavelmente a obra O grito[16] de Edvard Munch (1963 - 1944) estaria longe do ideal de Winckelmann, pois não traz a calma que pode mostrar a natureza da alma; diga-se que esta obra é o oposto disto. A obra-prima de Munch traz a angústia, o desespero e nada parece estar calmo, tampouco o mar ao fundo; tudo parece em ebulição.
Óbvio que não se pode fazer tal anacronismo e tentar fazer um historiador do século XVII pensar uma obra moderna, mas o que vale aqui é o fato de que Winckelmann não falava da arte em si, mas de um ideal próprio. Ele parece não buscar entender a arte, mas a si mesmo, um homem deslocado no tempo-espaço, que talvez seria profundo crítico do Die Brücke, grupo expressionista que surgiu em Dresden no começo do século XX, mesma cidade onde ele se converteu ao catolicismo para obter favor da corte católica local para conseguir meios de procurar por seu ideal helenista.
  



[1] Le Bassin aux Nynpheas. 1899 - Claude Monet. Òleo sobre tela. Museu D’Orsay – Paris.
[2]
[3] Winckelmann, Johann J. Reflexões sobre a Arte Antiga, pág 40.
[4] idem
[5] Michelangelo di Lodovico Buonarroti Simoni. (Caprese, 06 de março de 1475 – Roma, 18 de fevereiro de 1564).
[6] pág 53
[7]
[8] WÖLFFLIN, Heinrich; Conceitos fundamentais da História da Arte, Martins Fontes, 2009
[9]
[10] Êxtase de Santa Tereza – Gian Lorenzo Bernini. Igreja  de Santa Maria Della Vitória – Roma.
[11] Hermes – Museu Pio Clemente
[12] Apolo de Belvedere – Acervo do Museu Pio Clemente – Vaticano. Obra de datação e autoria desconhecida.
[13] Introdução à leitura de Winckelmann. – A destruição do Barroco, pgs13
[14] Vênus de Médicis – Século I d. C. Cópia em Mármore. Galleria Degli Uffizi – Florença.
[16]  O Grito. Série de pinturas do artista norueguês Edvard Munch. A única em coleção particular, datada de 1895, foi vendida em 2012 por quase 120 milhões de dólares.