I
Quando estive ante a obra Le Bassin aux Nynpheas[1]
de Claude Monet (1840 - 1826) senti algo muito denso, muito forte; não sei
exatamente como descrever, mas foi um tipo de impacto que me tirou da
passividade, pondo-me, talvez, em uma espécie de diálogo com a obra, ou com a
própria alma do artista. Não eram somente o desenho, as cores, técnica que me
tocaram. Era algo mais. Antes de entrar na sala onde estava esta obra já havia
percorrido um corredor admirando Renoir, Van Gogh, Manet, Cézanne e outros
impressionistas e pós-impressionistas, mas mesmo após tantas obras, algumas
icônicas, fui “abatido” por aquele Monet.
Isto me faz pensar que, atualmente,
quando os grandes artistas do passado e suas obras são levados para grandes
museus e são “idolatrados”, provavelmente haja um quê deste estranhamento que
nos arrebata, e nos leva a questões de como entender os porquês disto. Creio
que nunca se chegou a alguma solução para esta questão; o que vemos são
explicações sobre virtuosismo, técnica, materiais, momento histórico,
discussões sociais e sobre ética, etc. Mas estas argumentações não explicam o
“estranhamento”.
Provavelmente muitas das questões
naturais da História da Arte e da História Geral justificam o porquê das
teorias de Winckelmann e dos argumentos que ele utilizou, mas este certo
“estado de paixão”, de adoração, que viveu com a arte e cultura grega, deixa
transparecer este quê que está além das questões comuns.
Porém, quando se pensa nas questões
naturais não se pode deixar de tirar a razão dele, pois é certo que o povo que
foi berço da arte e cultura do ocidente, o foi de forma categórica. Em um curto
espaço de tempo da humanidade esta civilização legou o próprio sentido de ser e
pensar de seu tempo e do futuro. Seus pensadores e artistas ainda são
discutidos e festejados, mesmo passados milênios.
Pode-se afirmar que o historiador
alemão fez justiça ao colocar a arte grega acima da romana, pois esta última
surgiu a partir daquela e, é certo que muitas obras romanas, foram executadas
por artistas gregos. Oras! Roma não é outra coisa que uma filha da Grécia. Os
próprios romanos se orgulhavam de sua ascendência. Winckelmann não fez outra
coisa que trazer a ordem das coisas, porém, provavelmente ele não tinha como
entender um outro fator que é fundamental em um artista, além de produzir uma
obra para agradar e instruir[2],
um artista quer se expressar, o artista necessita se expressar, seja em
qualquer época ou região em que viva. Uma obra de arte não é outra coisa, senão
fruto da expressão da alma do artista, que pode ver da forma que desejar o
modelo que utiliza, seja para produzir uma musa, um deus pagão ou um ícone
cristão.
II
Winckelmann somente vê por arte
clássica a grega, enquanto na Itália e no oeste da Europa a cultura romana
seria a influência e inspiração para a Renascença e, posteriormente, para o
Barroco e para todas as outras épocas.
Porém, o historiador alemão não faz
seu estudo e suas teorias embasadas somente na arte, mas na própria maneira de
ser do povo grego. Ele vê a natureza dos antigos superior à natureza de seus
contemporâneos. Mas esta natureza de espírito superior que vislumbra nos gregos não pode ser atingida
em seu tempo, portanto, um artista somente poderia atingir uma obra superior se
buscasse uma natureza semelhante aos antigos. Com isto ele julgava não ser
possível produzir obras semelhantes aos gregos sem ser a partir de estudo das
obras destes.
E como grande exemplo utiliza a
escultura Laocoonti e seus filhos (figura 1) que será para ele uma
regra perfeita de arte[3].
E para poder ver a essência desta e de todas as obras gregas é necessário ter
uma percepção tal qual a que se conhece um amigo[4].
E foi esta a percepção quando Michelangelo[5]
(1475 – 1564) estudou as obras dos antigos gregos; assim pensava Winckelmann.
Então, não basta apenas olhar as obras, mas saber vê-las. Enxergar além da
matéria e ver as dores e forças; em outras palavras sentimentos e energias
expressas; é saber ver em Laocoonti sua alma magnânima e ponderada[6].
Enfim, ver que somente um grego moldado pela cultura da disciplina, da beleza e
da ginástica teria nobreza para ser modelo de resignação e representar uma
essência superior, que poderia, mesmo ante a uma morte imposta por vingança de
um deus, ter a nobreza de alma necessária para enfrentar seu destino, seria
como um Leônidas nas Termópilas.
Figura 1
Laocoonti e seus filhos
Atribuído a
Agesander, Athenodoros e Polydorus
Museu do
Vaticano
Parece que Winckelmann não levava em
conta a própria essência de Michelangelo, esta que o levou a produzir obras
que, certamente igualaram e superaram muitas esculturas gregas, seja em
virtuosismo, seja em natureza de espírito, mesmo vivendo em plena Florença
renascentista, que o historiador alemão certamente considerava inferior.
Na Florença renascentista não havia
nenhum modelo que pudesse ter a natureza de um jovem espartano que desde os
sete anos dormiu no chão e desde a sua infância foi treinada na luta e em
natação[7].
Talvez não houvesse um jovem de natureza tal qual a do espartano, mas um
artista pode superar com sua visão, pode em uma percepção mais elevada superar
e criar o ideal. Talvez Winckelmann pensaria diferente se soubesse que todo pintor
usa seu próprio sangue para pintar[8].
O pensamento de Heinrich Wölfflin (1864 - 1945) que veio dois séculos depois
das Reflexões Sobre a Arte Antiga mostra o fundamento do artista quando
produz, isto independente de época e região.
Se Winckelmann aceitava Michelângelo
como um artista com talento capaz de copiar os gregos, não via o mesmo em
Bernini[9]
(1598 - 1680), artista barroco que considerava que se devia produzir arte
copiando diretamente da natureza, pensamento inaceitável para o historiador,
pois para ele somente os gregos souberam fazê-lo. Mas não apenas o artista
grego era superior, mas a própria natureza grega o era; então, Bernini não
poderia produzir uma obra de arte verdadeiramente grandiosa copiando direto de
uma natureza inferior.
É certo, porém, que o Êxtase de
Santa Tereza[10] (Figura
2) esculpida entre 1645 – 1652 esta longe de ser uma obra inferior. A
escultura, com fundamento religioso católico traz uma sensibilidade
impressionante, sobretudo na figura da face de Santa Tereza, onde se pode ver e
sentir toda expressão do êxtase da santa retratada.
Figura 2
Detalhe da obra Êxtase de
Santa Tereza
Gian Lorenzo Bernini
Igreja de Santa Maria Della
Vitória - Roma
Mas nada importava para o historiador alemão que parece ter mesmo
encontrado aquele estranhamento na obras e cultura grega e dirá que será
preferível que se estude o Antinous Admirandus[11]
ou Apolo do Vaticano[12]
que seguir o conselho que era dado por Bernini a seus alunos que dizia para
se estudar preferencialmente a natureza no que ela mostra de mais belo,
mas para Winckelmann este não era o caminho mais curto[13]
que seria estudar os gregos. Se Bernini ensinava a seus alunos a estudar a
natureza, por sua vez ele próprio encontrou o encanto da Vênus de Médicis[14],
sendo esta que lhe mostrou a natureza da beleza; ao estudar a Vênus ele teria
aprendido a verdadeira beleza e, portanto, sabia onde ver e encontrar o belo na
natureza; ele havia aprendido a ver o belo com a Vênus. Este era o caminho
natural: aprender com os gregos e aplicar em seu tempo. Copiar direto da
natureza é fazer somente retratos, como os holandeses, copiar dos gregos leva
ao belo universal[15].
Neste ponto Winckelmann tornam claras suas teorias. Aqui ele mostra que de fato
não é a obra em si que é o importante, mas a condição natural da cultura grega.
Então podemos dizer que de certa forma não era a arte grega superior, mas
a natureza da civilização. Será que Winckelmann não teria se confundido e
legasse suas obras sem ele mesmo ter compreendido suas idéias? Na introdução à
obra Reflexões Sobre a Arte Antiga, Gerd A. Bornheim diz que Winckelmann
não foi de fato compreendido pelos artistas alemães que acabaram por seguirem
por um academismo e o culparam por isto. O autor das Reflexões Sobre
a Arte Antiga parece que não tinha o intuito de fazer a arte ser acadêmica
ou não, mas fazer surgir uma renascença grega em todos os aspectos e isto
deveria ser feito inspirado na escultura grega, que era a mais forte herança
ainda viva em seu tempo.
III
Parece-me que Winckelmann usou a materialidade das esculturas para
encontrar a alma e não percebeu que a única coisa universal é a própria alma;
se há um belo universal, este não será expresso nos corpos, mas na essência do
ser humano. O que ele buscava era um ideal que era traduzido nas obras primas
antigas que ele não conseguia ver em obras de outras épocas ou povos; ou
somente encontrou em Michelangelo, o único que soube ver a beleza como os
gregos viam, assim acreditava o historiador alemão.
Se Winckelmann tinha uma visão particular e uma expectativa quanto à arte
grega estas de fato não são difíceis de se entender, pois as obras gregas são
realmente de grande beleza e inspiradoras. É certo também que a arte sempre
inspira a arte e a vida. Neste contexto então, devemos dar razão em parte ao
historiador que, antes de tudo foi um grande aficionado pela cultura grega e
penso que ele está certo quando coloca a arte grega acima da romana.
Mas quanto ao ideal grego que ele prega, talvez seja mais um ideal dele
mesmo que encontrou eco na antiga Grécia; este ideal o levou para a Itália,
pois lá estaria mais próxima de sua terra dos sonhos que, é certo já não
existia mais há quase dois milênios. Provavelmente esperava encontrar lá a
arquitetura, esculturas, pinturas e desenhos que o fariam mergulhar em seu
mundo. Este sonho fez com que abandonasse sua própria terra e buscasse fuga no
mundo de seus ideais, mas jamais chegou a seu destino, permanecendo na Itália,
o mais próximo que se parecia com o que buscava.
Talvez ele não tenha entendido que os mundos são perfeitos quando não são
vividos de fato, mas quando somente vivem como ideal. Isto pode ser pensado
pelo fato de que as obras gregas retratavam um povo que buscava se preparar
para a defesa de suas terras e sua cultura contra invasores estrangeiros;
enfim, os Persas estavam sempre como uma sombra sobre suas cabeças; além das
próprias lutas internas. Mas, por outro lado vale lembrar que este povo legou a
filosofia e as questões mais profundas até então formuladas em nossa
civilização. Enfim, um misto de força e sabedoria. Winckelmann havia acertado
onde endereçar seu mundo ideal irrealizável.
Como fundamento de História da Arte ele é válido pelo pioneirismo, e
deve-se, contudo, deixar seus argumentos apenas como um canto poético a mais
nobre cultura que já existiu.
Quanto aos Berninis e os demais artistas barrocos e também os
renascentistas e todos os demais fica a certeza de que a arte não está presa a
uma época ou região, mas como divisa da alma humana, que a produz da forma que
sente; alma humana, esta a única natureza verdadeiramente universal.
A partir disto tudo é possível fazer uma reflexão sobre como Winckelmann
veria a arte moderna.
Sabendo-se que a arte moderna tardou a chegar a Alemanha e que os
nazistas criaram o conceito de arte degenerada penso que Winckelmann
associar-se-ia com os contrários a nova arte, aliás, se ele condenava o barroco
é certo que o que viria depois seria condenável também. Provavelmente a obra O
grito[16]
de Edvard Munch (1963 - 1944) estaria longe do ideal de Winckelmann, pois não
traz a calma que pode mostrar a natureza da alma; diga-se que esta obra é o
oposto disto. A obra-prima de Munch traz a angústia, o desespero e nada parece
estar calmo, tampouco o mar ao fundo; tudo parece em ebulição.
Óbvio que não se pode fazer tal anacronismo e tentar fazer um historiador
do século XVII pensar uma obra moderna, mas o que vale aqui é o fato de que
Winckelmann não falava da arte em si, mas de um ideal próprio. Ele parece não
buscar entender a arte, mas a si mesmo, um homem deslocado no tempo-espaço, que
talvez seria profundo crítico do Die Brücke, grupo expressionista que surgiu em
Dresden no começo do século XX, mesma cidade onde ele se converteu ao
catolicismo para obter favor da corte católica local para conseguir meios de
procurar por seu ideal helenista.
[1] Le Bassin aux Nynpheas. 1899 -
Claude Monet. Òleo sobre tela. Museu D’Orsay – Paris.
[3] Winckelmann,
Johann J. Reflexões sobre a Arte Antiga, pág 40.
[4] idem
[5] Michelangelo di
Lodovico Buonarroti Simoni. (Caprese, 06 de março de 1475 – Roma, 18 de
fevereiro de 1564).
[6] pág 53
[8] WÖLFFLIN,
Heinrich; Conceitos fundamentais da História da Arte, Martins Fontes, 2009
[11] Hermes – Museu Pio Clemente
[12] Apolo de
Belvedere – Acervo do Museu Pio Clemente – Vaticano. Obra de datação e autoria
desconhecida.
[13] Introdução
à leitura de Winckelmann. – A destruição do Barroco, pgs13
[14] Vênus de
Médicis – Século I d. C. Cópia em Mármore. Galleria Degli Uffizi – Florença.
[16] O Grito. Série de pinturas do artista
norueguês Edvard Munch. A única em coleção particular, datada de 1895, foi
vendida em 2012 por quase 120 milhões de dólares.


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