sábado, 17 de novembro de 2018

O ESTRANHAMENTO DE WINCKELMANN



I

Quando estive ante a obra Le Bassin aux Nynpheas[1] de Claude Monet (1840 - 1826) senti algo muito denso, muito forte; não sei exatamente como descrever, mas foi um tipo de impacto que me tirou da passividade, pondo-me, talvez, em uma espécie de diálogo com a obra, ou com a própria alma do artista. Não eram somente o desenho, as cores, técnica que me tocaram. Era algo mais. Antes de entrar na sala onde estava esta obra já havia percorrido um corredor admirando Renoir, Van Gogh, Manet, Cézanne e outros impressionistas e pós-impressionistas, mas mesmo após tantas obras, algumas icônicas, fui “abatido” por aquele Monet.
            Isto me faz pensar que, atualmente, quando os grandes artistas do passado e suas obras são levados para grandes museus e são “idolatrados”, provavelmente haja um quê deste estranhamento que nos arrebata, e nos leva a questões de como entender os porquês disto. Creio que nunca se chegou a alguma solução para esta questão; o que vemos são explicações sobre virtuosismo, técnica, materiais, momento histórico, discussões sociais e sobre ética, etc. Mas estas argumentações não explicam o “estranhamento”.
            Provavelmente muitas das questões naturais da História da Arte e da História Geral justificam o porquê das teorias de Winckelmann e dos argumentos que ele utilizou, mas este certo “estado de paixão”, de adoração, que viveu com a arte e cultura grega, deixa transparecer este quê que está além das questões comuns.
            Porém, quando se pensa nas questões naturais não se pode deixar de tirar a razão dele, pois é certo que o povo que foi berço da arte e cultura do ocidente, o foi de forma categórica. Em um curto espaço de tempo da humanidade esta civilização legou o próprio sentido de ser e pensar de seu tempo e do futuro. Seus pensadores e artistas ainda são discutidos e festejados, mesmo passados milênios.
            Pode-se afirmar que o historiador alemão fez justiça ao colocar a arte grega acima da romana, pois esta última surgiu a partir daquela e, é certo que muitas obras romanas, foram executadas por artistas gregos. Oras! Roma não é outra coisa que uma filha da Grécia. Os próprios romanos se orgulhavam de sua ascendência. Winckelmann não fez outra coisa que trazer a ordem das coisas, porém, provavelmente ele não tinha como entender um outro fator que é fundamental em um artista, além de produzir uma obra para agradar e instruir[2], um artista quer se expressar, o artista necessita se expressar, seja em qualquer época ou região em que viva. Uma obra de arte não é outra coisa, senão fruto da expressão da alma do artista, que pode ver da forma que desejar o modelo que utiliza, seja para produzir uma musa, um deus pagão ou um ícone cristão.

II

            Winckelmann somente vê por arte clássica a grega, enquanto na Itália e no oeste da Europa a cultura romana seria a influência e inspiração para a Renascença e, posteriormente, para o Barroco e para todas as outras épocas.
            Porém, o historiador alemão não faz seu estudo e suas teorias embasadas somente na arte, mas na própria maneira de ser do povo grego. Ele vê a natureza dos antigos superior à natureza de seus contemporâneos. Mas esta natureza de espírito superior que  vislumbra nos gregos não pode ser atingida em seu tempo, portanto, um artista somente poderia atingir uma obra superior se buscasse uma natureza semelhante aos antigos. Com isto ele julgava não ser possível produzir obras semelhantes aos gregos sem ser a partir de estudo das obras destes.
            E como grande exemplo utiliza a escultura Laocoonti e seus filhos (figura 1) que será para ele uma regra perfeita de arte[3]. E para poder ver a essência desta e de todas as obras gregas é necessário ter uma percepção tal qual a que se conhece um amigo[4]. E foi esta a percepção quando Michelangelo[5] (1475 – 1564) estudou as obras dos antigos gregos; assim pensava Winckelmann. Então, não basta apenas olhar as obras, mas saber vê-las. Enxergar além da matéria e ver as dores e forças; em outras palavras sentimentos e energias expressas; é saber ver em Laocoonti sua alma magnânima e ponderada[6]. Enfim, ver que somente um grego moldado pela cultura da disciplina, da beleza e da ginástica teria nobreza para ser modelo de resignação e representar uma essência superior, que poderia, mesmo ante a uma morte imposta por vingança de um deus, ter a nobreza de alma necessária para enfrentar seu destino, seria como um Leônidas nas Termópilas.
                                                   
  Figura 1
Laocoonti e seus filhos
Atribuído a Agesander, Athenodoros e Polydorus
Museu do Vaticano

            Parece que Winckelmann não levava em conta a própria essência de Michelangelo, esta que o levou a produzir obras que, certamente igualaram e superaram muitas esculturas gregas, seja em virtuosismo, seja em natureza de espírito, mesmo vivendo em plena Florença renascentista, que o historiador alemão certamente considerava inferior.
            Na Florença renascentista não havia nenhum modelo que pudesse ter a natureza de um jovem espartano que desde os sete anos dormiu no chão e desde a sua infância foi treinada na luta e em natação[7]. Talvez não houvesse um jovem de natureza tal qual a do espartano, mas um artista pode superar com sua visão, pode em uma percepção mais elevada superar e criar o ideal. Talvez Winckelmann pensaria diferente se soubesse que todo pintor usa seu próprio sangue para pintar[8]. O pensamento de Heinrich Wölfflin (1864 - 1945) que veio dois séculos depois das Reflexões Sobre a Arte Antiga mostra o fundamento do artista quando produz, isto independente de época e região.
            Se Winckelmann aceitava Michelângelo como um artista com talento capaz de copiar os gregos, não via o mesmo em Bernini[9] (1598 - 1680), artista barroco que considerava que se devia produzir arte copiando diretamente da natureza, pensamento inaceitável para o historiador, pois para ele somente os gregos souberam fazê-lo. Mas não apenas o artista grego era superior, mas a própria natureza grega o era; então, Bernini não poderia produzir uma obra de arte verdadeiramente grandiosa copiando direto de uma natureza inferior.
            É certo, porém, que o Êxtase de Santa Tereza[10] (Figura 2) esculpida entre 1645 – 1652 esta longe de ser uma obra inferior. A escultura, com fundamento religioso católico traz uma sensibilidade impressionante, sobretudo na figura da face de Santa Tereza, onde se pode ver e sentir toda expressão do êxtase da santa retratada.
                                                   
  Figura 2
Detalhe da obra Êxtase de Santa Tereza
Gian Lorenzo Bernini
Igreja de Santa Maria Della Vitória - Roma
           
Mas nada importava para o historiador alemão que parece ter mesmo encontrado aquele estranhamento na obras e cultura grega e dirá que será preferível que se estude o Antinous Admirandus[11] ou Apolo do Vaticano[12] que seguir o conselho que era dado por Bernini a seus alunos que dizia para se estudar preferencialmente a natureza no que ela mostra de mais belo, mas para Winckelmann este não era o caminho mais curto[13] que seria estudar os gregos. Se Bernini ensinava a seus alunos a estudar a natureza, por sua vez ele próprio encontrou o encanto da Vênus de Médicis[14], sendo esta que lhe mostrou a natureza da beleza; ao estudar a Vênus ele teria aprendido a verdadeira beleza e, portanto, sabia onde ver e encontrar o belo na natureza; ele havia aprendido a ver o belo com a Vênus. Este era o caminho natural: aprender com os gregos e aplicar em seu tempo. Copiar direto da natureza é fazer somente retratos, como os holandeses, copiar dos gregos leva ao belo universal[15]. Neste ponto Winckelmann tornam claras suas teorias. Aqui ele mostra que de fato não é a obra em si que é o importante, mas a condição natural da cultura grega.
Então podemos dizer que de certa forma não era a arte grega superior, mas a natureza da civilização. Será que Winckelmann não teria se confundido e legasse suas obras sem ele mesmo ter compreendido suas idéias? Na introdução à obra Reflexões Sobre a Arte Antiga, Gerd A. Bornheim diz que Winckelmann não foi de fato compreendido pelos artistas alemães que acabaram por seguirem por um academismo e o culparam por isto. O autor das Reflexões Sobre a Arte Antiga parece que não tinha o intuito de fazer a arte ser acadêmica ou não, mas fazer surgir uma renascença grega em todos os aspectos e isto deveria ser feito inspirado na escultura grega, que era a mais forte herança ainda viva em seu tempo.

 III
Parece-me que Winckelmann usou a materialidade das esculturas para encontrar a alma e não percebeu que a única coisa universal é a própria alma; se há um belo universal, este não será expresso nos corpos, mas na essência do ser humano. O que ele buscava era um ideal que era traduzido nas obras primas antigas que ele não conseguia ver em obras de outras épocas ou povos; ou somente encontrou em Michelangelo, o único que soube ver a beleza como os gregos viam, assim acreditava o historiador alemão.
Se Winckelmann tinha uma visão particular e uma expectativa quanto à arte grega estas de fato não são difíceis de se entender, pois as obras gregas são realmente de grande beleza e inspiradoras. É certo também que a arte sempre inspira a arte e a vida. Neste contexto então, devemos dar razão em parte ao historiador que, antes de tudo foi um grande aficionado pela cultura grega e penso que ele está certo quando coloca a arte grega acima da romana.
Mas quanto ao ideal grego que ele prega, talvez seja mais um ideal dele mesmo que encontrou eco na antiga Grécia; este ideal o levou para a Itália, pois lá estaria mais próxima de sua terra dos sonhos que, é certo já não existia mais há quase dois milênios. Provavelmente esperava encontrar lá a arquitetura, esculturas, pinturas e desenhos que o fariam mergulhar em seu mundo. Este sonho fez com que abandonasse sua própria terra e buscasse fuga no mundo de seus ideais, mas jamais chegou a seu destino, permanecendo na Itália, o mais próximo que se parecia com o que buscava.
Talvez ele não tenha entendido que os mundos são perfeitos quando não são vividos de fato, mas quando somente vivem como ideal. Isto pode ser pensado pelo fato de que as obras gregas retratavam um povo que buscava se preparar para a defesa de suas terras e sua cultura contra invasores estrangeiros; enfim, os Persas estavam sempre como uma sombra sobre suas cabeças; além das próprias lutas internas. Mas, por outro lado vale lembrar que este povo legou a filosofia e as questões mais profundas até então formuladas em nossa civilização. Enfim, um misto de força e sabedoria. Winckelmann havia acertado onde endereçar seu mundo ideal irrealizável.
Como fundamento de História da Arte ele é válido pelo pioneirismo, e deve-se, contudo, deixar seus argumentos apenas como um canto poético a mais nobre cultura que já existiu.
Quanto aos Berninis e os demais artistas barrocos e também os renascentistas e todos os demais fica a certeza de que a arte não está presa a uma época ou região, mas como divisa da alma humana, que a produz da forma que sente; alma humana, esta a única natureza verdadeiramente universal.
A partir disto tudo é possível fazer uma reflexão sobre como Winckelmann veria a arte moderna.
Sabendo-se que a arte moderna tardou a chegar a Alemanha e que os nazistas criaram o conceito de arte degenerada penso que Winckelmann associar-se-ia com os contrários a nova arte, aliás, se ele condenava o barroco é certo que o que viria depois seria condenável também. Provavelmente a obra O grito[16] de Edvard Munch (1963 - 1944) estaria longe do ideal de Winckelmann, pois não traz a calma que pode mostrar a natureza da alma; diga-se que esta obra é o oposto disto. A obra-prima de Munch traz a angústia, o desespero e nada parece estar calmo, tampouco o mar ao fundo; tudo parece em ebulição.
Óbvio que não se pode fazer tal anacronismo e tentar fazer um historiador do século XVII pensar uma obra moderna, mas o que vale aqui é o fato de que Winckelmann não falava da arte em si, mas de um ideal próprio. Ele parece não buscar entender a arte, mas a si mesmo, um homem deslocado no tempo-espaço, que talvez seria profundo crítico do Die Brücke, grupo expressionista que surgiu em Dresden no começo do século XX, mesma cidade onde ele se converteu ao catolicismo para obter favor da corte católica local para conseguir meios de procurar por seu ideal helenista.
  



[1] Le Bassin aux Nynpheas. 1899 - Claude Monet. Òleo sobre tela. Museu D’Orsay – Paris.
[2]
[3] Winckelmann, Johann J. Reflexões sobre a Arte Antiga, pág 40.
[4] idem
[5] Michelangelo di Lodovico Buonarroti Simoni. (Caprese, 06 de março de 1475 – Roma, 18 de fevereiro de 1564).
[6] pág 53
[7]
[8] WÖLFFLIN, Heinrich; Conceitos fundamentais da História da Arte, Martins Fontes, 2009
[9]
[10] Êxtase de Santa Tereza – Gian Lorenzo Bernini. Igreja  de Santa Maria Della Vitória – Roma.
[11] Hermes – Museu Pio Clemente
[12] Apolo de Belvedere – Acervo do Museu Pio Clemente – Vaticano. Obra de datação e autoria desconhecida.
[13] Introdução à leitura de Winckelmann. – A destruição do Barroco, pgs13
[14] Vênus de Médicis – Século I d. C. Cópia em Mármore. Galleria Degli Uffizi – Florença.
[16]  O Grito. Série de pinturas do artista norueguês Edvard Munch. A única em coleção particular, datada de 1895, foi vendida em 2012 por quase 120 milhões de dólares.

Nenhum comentário:

Postar um comentário