Levando novas perspectivas para discutir histórias particulares, mas com
o intuito de discutir a própria história da Nação, fotógrafos argentinos buscam
nas arqueologias pessoais uma forma de resgate e questionamento do passado,
usando para tanto, imagens como documento social; buscam também uma forma de
remissão dos desajustes terrorista praticado por um Estado totalitário; Estado
que ataca e fere profundamente o próprio povo.
Três décadas de ausências são trazidas a tona, mas tentando suprir com
novas poesias as lacunas deixadas pelos anos de terror. Ou seja, uma nova
percepção para discutir dramas eternos.
Rodrigo Montero[1],
no texto em que se baseia meu estudo, considera que através dos tempos as
imagens ocuparam papel fundamental na constituição e consolidação de memória
da ditadura[2]. Por
isto traz à reflexão trabalhos de alguns fotógrafos que buscaram novas formas
de trazer à memória pessoas, situações e histórias que foram silenciadas e que
deixaram uma sensação de vazio; sobretudo, sobre as vidas que foram
interrompidas; histórias que foram silenciadas por forças não naturais.
Não buscando tão somente imagens com o simples intuito de rememorar
momentos os artistas argentinos foram a busca de uma nova memória; um novo
resgate a partir do individuo, mas que quer aprofundar no drama coletivo e
discutir e rebater os discursos de conciliação e esquecimento, promovido por
alguns setores políticos e sociais.
Os dramas são trazidos a vida como se ainda estivessem presente, aliás,
os dramas nunca foram passados; os dramas se perpetraram na ausência dos que
foram mortos ou talvez até mais intensos nos que desapareceram. Estranho olhar
o trabalho do fotógrafo Gustavo Germano onde confronta fotografias antigas com
fotografias registradas por ele no mesmo no local onde personagens do registro
antigo parecem estar presente como fantasmas em forma de memórias. Aos
personagens que ainda vivem somente com as lembranças fica um estado de solidão
que é nítido na imagem 1, onde o sorriso da mulher claramente se perdeu em
algum momento. Certamente a falta de respostas dos porquês dão mais
dramaticidade às histórias intimas e por isto o surgimento de produções e
ensaios visuais centrados na perspectivas intima familiar.
Figura 1[3]
Gustavo Germano
Montero argumenta que para estas novas reivindicações de familiares das vítimas
está o novo contexto político e judiciário e de movimentos de direitos
humanos. Outro ponto importante apontado está no fator biológico,
uma vez que os filhos das vítimas da ditadura argentina se tornarem
adultos e buscam pelo resgate do que foi interrompido em suas vidas de forma
traumática. E os filhos se vêem não apenas em drama solitário e silencioso, mas
ao contrário, se percebem em meio a tensão entre a memória social e a
memória familiar. Fica evidente a tensão entre o público e o privado.
Enfim, há uma história comum que toca milhares de pessoas que se identificam
nos pontos comuns sempre pleno de dores e ausências advinda da mesma causa: o
terrorismo promovido pelo Estado.
Assim como tantas outras famílias, a de Lucila Quieto também foi mutilada.
A fotógrafa, filha de Carlos Alberto Quieto, não conheceu o pai que desapareceu
cinco meses antes de seu nascimento em 1977. O lapso de meses impediu que
houvesse qualquer registro de pai e filha juntos. Tão somente mais um álbum de
família onde a ausência se faz por causas não naturais; mais um álbum de
memórias que nunca existiram. Porém, Lucila resolver suprir esta lacuna em seu
álbum (figura 2). Mais que suprir uma falha, Lucila mostra todo o trauma
advindo da memória ausente e entra nas fotografias de Carlos Alberto.
A fotógrafa projeta a fotografia do pai em uma parede e impõe a própria
presença em uma nova fotografia. O resultado significou o nascimento da Arqueologia de la Ausencia,
projeto realizado entre 1999 e 2001. O projeto foi além, com Lucila convidando
outras pessoas a participarem. Ao todo ela fez trinta e cinco fotografias em
preto e branco onde faz surgir os encontros impossíveis. É o resgate possível,
mas que quer mais. Quer ser um documento. Parece querer dizer o que de fato foi
aquele momento histórico; momento de rasgos profundos para as pessoas comuns
que se viram sem poderem deixar suas memórias; seus registros.
Figura 2[4]
Lucila Quieto
Algumas das pessoas queriam que a projeção fosse feita em seus corpos
como se tivessem dando um corpo, um corpo possível, para a memória criada. As
imagens que mesclam dois tempos tão distantes criam, então, um tempo
onírico, uma temporalidade própria na qual pode acontecer a cerimônia do
encontro. Duas realidades fundidas em um instante surreal que somente
existe de fato nas emoções de quem o vive o momento do registro e que se
perpetua nas memórias que não aconteceram, mas que passaram todos os anos como
sendo potencialidades de terem sido fato concreto, embora se saiba dos trágicos
destinos.
Destaca-se no trabalho de Quieto o fato de ela não buscar disfarçar as
montagens e seus processos, mas ao contrário, ela parece querer mostrar os
cortes, como se a mostrar os traumas que as imagens representam. Cria-se um
corpo traumático em uma memória de ilusão. Assim as fendas não se fecham, pois
não é isto que se busca; enfim, longe de querer enganar com montagens
digitais, Lucila esfrega na nossa cara a artificialidade da cena. Nos
álbuns que passam a ser forjados por Lucila levam-se as momentos que se
identificam com as melhores memórias dos fotografados, pois, enfim, são somente
estas que são registradas.
Assim como Lucila Quieto, Gustavo Germano teve seu drama pessoal. Germano
teve um irmão seqüestrado e desapareceu. A partir de sua história partiu para
pesquisar outras histórias e buscou uma poética de contrastes. Se Quieto queria
reunir as histórias, Germano quer tornar evidente o trauma. Em dípticos coloca
lado a lado duas construções onde a ausência de personagem(ns) na imagem recente
traduz o drama da memória não vivida. A melancolia, a solidão ou simplesmente o
vazio, fica como documento atestando a ruptura na história. Uma tensão entre
desejo e impossibilidade que funciona como um manifesto visual além da
própria imagem.
Maria Soledad Nívoli, que assim como Lucila Quieto, também não conheceu o
pai, desaparecido em 1977, quando ela tinha quatro meses. parte por uma poética mais próxima a Germano
onde ela mostra a ausência não na imagem em si, como fez o fotógrafo, mas em
uma “auréola quase mística”, pois em seus dípticos (ex. figura 3) uma foto é
registro de seu pai, outra é o registro dela no mesmo local, como a seguir os
passos dele; parece querer encontrá-lo em algum lugar do passado ou quem sabe
criar uma conexão entre os dois tempos. Contudo, fica somente um sentido de
continuidade.
Imagem 3[5]
Maria Soledad Nívoli
Além destes três casos citados, outros artistas também desenvolvem
trabalhos na produção visual com temática sobre os desaparecidos no regime
ditatorial argentino, tais como Clara Rosson, Cládua Bettina, Julio Pantoja e
Inés Ulanovsky. Este fenômeno é corroborado com a forte presença em mostras em
centros culturais e museus.
Rodrigo Montero considera que estes trabalhos dos fotógrafos argentinos
inserem-se no contexto contemporâneo e insere-se na fotografia centrada em
imagens casuais de indivíduos, de famílias e de grupos que alguns teóricos
definem como “estética da intimidade”, porém, a estéticas dos argentinos
distanciam-se de artistas de reconhecimento internacional, cita o exemplo da
americana Nan Goldi e do inglês Richard Billingham que trabalham a temática da
intimidade, mas que por razões de distanciamento de regiões de genocídios,
de terrorismo de estado e desaparição de pessoas como sistemática de extermínio
não passam pelas questões em nível de militância, como agentes sociais. Nos
trabalhos argentinos, pode-se pensar que estão além do simples mostrar e o
ver, eles vão a busca de novas percepções e reflexões sobre o passado.
Lucila, Gustavo e Maria Soledad querem uma nova matriz para suas memórias que
se confundem com as memórias de tantos outros e com isto partem para um sistema
comunicacional aberto e subjetivo que supera as limitações do sistema verbal.
Estas produções estão sim incluídas no sistema que se reconhece como arte
contemporânea, mas, como afirma Montero, mais que conceber a partir de
inteligências artísticas, busca-se, sobretudo, reflexões
político-sociais.
Bibliografia
MONTERO, R. Arte
e Imagem como construção
de memórias familiares da pós-ditadura argentina.
[1] Rodrigo
Montero: Mestre em História, Teoria e Crítica
da Arte pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2013). Formado em Artes
Visuais com ênfase em História, Teoria e Crítica da Arte pelo Instituto de
Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2010)
[2] Montero, R.
Arte e Imagem como construção de memórias familiares da pós-ditadura argentina.
[3] Fonte:
http://www.gustavogermano.com/
[4] Fonte da imagem:
http://weblogs.clarin.com/itinerarte/2007/04/09/historia_de_una_doble_profanacion/
[5] Fonte da
imagem:
http://image.slidesharecdn.com/corporalidadymemoria-sep09resumenparass-100128044843-phpapp01/95/corporalidad-y-memoria-en-ensayos-fotogrficos-20-728.jpg?cb=1265263570
(AEM, 2016)



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