domingo, 18 de novembro de 2018

ARTE E IMAGEM COMO CONSTRUÇÃO DE MEMÓRIAS FAMILIARES DA PÓS-DITADURA ARGENTINA


Levando novas perspectivas para discutir histórias particulares, mas com o intuito de discutir a própria história da Nação, fotógrafos argentinos buscam nas arqueologias pessoais uma forma de resgate e questionamento do passado, usando para tanto, imagens como documento social; buscam também uma forma de remissão dos desajustes terrorista praticado por um Estado totalitário; Estado que ataca e fere profundamente o próprio povo.
Três décadas de ausências são trazidas a tona, mas tentando suprir com novas poesias as lacunas deixadas pelos anos de terror. Ou seja, uma nova percepção para discutir dramas eternos.
Rodrigo Montero[1], no texto em que se baseia meu estudo, considera que através dos tempos as imagens ocuparam papel fundamental na constituição e consolidação de memória da ditadura[2]. Por isto traz à reflexão trabalhos de alguns fotógrafos que buscaram novas formas de trazer à memória pessoas, situações e histórias que foram silenciadas e que deixaram uma sensação de vazio; sobretudo, sobre as vidas que foram interrompidas; histórias que foram silenciadas por forças não naturais.
Não buscando tão somente imagens com o simples intuito de rememorar momentos os artistas argentinos foram a busca de uma nova memória; um novo resgate a partir do individuo, mas que quer aprofundar no drama coletivo e discutir e rebater os discursos de conciliação e esquecimento, promovido por alguns setores políticos e sociais.
Os dramas são trazidos a vida como se ainda estivessem presente, aliás, os dramas nunca foram passados; os dramas se perpetraram na ausência dos que foram mortos ou talvez até mais intensos nos que desapareceram. Estranho olhar o trabalho do fotógrafo Gustavo Germano onde confronta fotografias antigas com fotografias registradas por ele no mesmo no local onde personagens do registro antigo parecem estar presente como fantasmas em forma de memórias. Aos personagens que ainda vivem somente com as lembranças fica um estado de solidão que é nítido na imagem 1, onde o sorriso da mulher claramente se perdeu em algum momento. Certamente a falta de respostas dos porquês dão mais dramaticidade às histórias intimas e por isto o surgimento de produções e ensaios visuais centrados na perspectivas intima familiar.
Figura 1[3]
Gustavo Germano

Montero argumenta que para estas novas reivindicações de familiares das vítimas está o novo contexto político e judiciário e de movimentos de direitos humanos. Outro ponto importante apontado está no fator biológico, uma vez que os filhos das vítimas da ditadura argentina se tornarem adultos e buscam pelo resgate do que foi interrompido em suas vidas de forma traumática. E os filhos se vêem não apenas em drama solitário e silencioso, mas ao contrário, se percebem em meio a tensão entre a memória social e a memória familiar. Fica evidente a tensão entre o público e o privado. Enfim, há uma história comum que toca milhares de pessoas que se identificam nos pontos comuns sempre pleno de dores e ausências advinda da mesma causa: o terrorismo promovido pelo Estado.
Assim como tantas outras famílias, a de Lucila Quieto também foi mutilada. A fotógrafa, filha de Carlos Alberto Quieto, não conheceu o pai que desapareceu cinco meses antes de seu nascimento em 1977. O lapso de meses impediu que houvesse qualquer registro de pai e filha juntos. Tão somente mais um álbum de família onde a ausência se faz por causas não naturais; mais um álbum de memórias que nunca existiram. Porém, Lucila resolver suprir esta lacuna em seu álbum (figura 2). Mais que suprir uma falha, Lucila mostra todo o trauma advindo da memória ausente e entra nas fotografias de Carlos Alberto.
A fotógrafa projeta a fotografia do pai em uma parede e impõe a própria presença em uma nova fotografia. O resultado significou  o nascimento da Arqueologia de la Ausencia, projeto realizado entre 1999 e 2001. O projeto foi além, com Lucila convidando outras pessoas a participarem. Ao todo ela fez trinta e cinco fotografias em preto e branco onde faz surgir os encontros impossíveis. É o resgate possível, mas que quer mais. Quer ser um documento. Parece querer dizer o que de fato foi aquele momento histórico; momento de rasgos profundos para as pessoas comuns que se viram sem poderem deixar suas memórias; seus registros.
Figura 2[4]
Lucila Quieto

Algumas das pessoas queriam que a projeção fosse feita em seus corpos como se tivessem dando um corpo, um corpo possível, para a memória criada. As imagens que mesclam dois tempos tão distantes criam, então, um tempo onírico, uma temporalidade própria na qual pode acontecer a cerimônia do encontro. Duas realidades fundidas em um instante surreal que somente existe de fato nas emoções de quem o vive o momento do registro e que se perpetua nas memórias que não aconteceram, mas que passaram todos os anos como sendo potencialidades de terem sido fato concreto, embora se saiba dos trágicos destinos.
Destaca-se no trabalho de Quieto o fato de ela não buscar disfarçar as montagens e seus processos, mas ao contrário, ela parece querer mostrar os cortes, como se a mostrar os traumas que as imagens representam. Cria-se um corpo traumático em uma memória de ilusão. Assim as fendas não se fecham, pois não é isto que se busca; enfim, longe de querer enganar com montagens digitais, Lucila esfrega na nossa cara a artificialidade da cena. Nos álbuns que passam a ser forjados por Lucila levam-se as momentos que se identificam com as melhores memórias dos fotografados, pois, enfim, são somente estas que são registradas.
Assim como Lucila Quieto, Gustavo Germano teve seu drama pessoal. Germano teve um irmão seqüestrado e desapareceu. A partir de sua história partiu para pesquisar outras histórias e buscou uma poética de contrastes. Se Quieto queria reunir as histórias, Germano quer tornar evidente o trauma. Em dípticos coloca lado a lado duas construções onde a ausência de personagem(ns) na imagem recente traduz o drama da memória não vivida. A melancolia, a solidão ou simplesmente o vazio, fica como documento atestando a ruptura na história. Uma tensão entre desejo e impossibilidade que funciona como um manifesto visual além da própria imagem.
Maria Soledad Nívoli, que assim como Lucila Quieto, também não conheceu o pai, desaparecido em 1977, quando ela tinha quatro meses.  parte por uma poética mais próxima a Germano onde ela mostra a ausência não na imagem em si, como fez o fotógrafo, mas em uma “auréola quase mística”, pois em seus dípticos (ex. figura 3) uma foto é registro de seu pai, outra é o registro dela no mesmo local, como a seguir os passos dele; parece querer encontrá-lo em algum lugar do passado ou quem sabe criar uma conexão entre os dois tempos. Contudo, fica somente um sentido de continuidade.
Imagem 3[5]
Maria Soledad Nívoli

Além destes três casos citados, outros artistas também desenvolvem trabalhos na produção visual com temática sobre os desaparecidos no regime ditatorial argentino, tais como Clara Rosson, Cládua Bettina, Julio Pantoja e Inés Ulanovsky. Este fenômeno é corroborado com a forte presença em mostras em centros culturais e museus.
Rodrigo Montero considera que estes trabalhos dos fotógrafos argentinos inserem-se no contexto contemporâneo e insere-se na fotografia centrada em imagens casuais de indivíduos, de famílias e de grupos que alguns teóricos definem como “estética da intimidade”, porém, a estéticas dos argentinos distanciam-se de artistas de reconhecimento internacional, cita o exemplo da americana Nan Goldi e do inglês Richard Billingham que trabalham a temática da intimidade, mas que por razões de distanciamento de regiões de genocídios, de terrorismo de estado e desaparição de pessoas como sistemática de extermínio não passam pelas questões em nível de militância, como agentes sociais. Nos trabalhos argentinos, pode-se pensar que estão além do simples mostrar e o ver, eles vão a busca de novas percepções e reflexões sobre o passado. Lucila, Gustavo e Maria Soledad querem uma nova matriz para suas memórias que se confundem com as memórias de tantos outros e com isto partem para um sistema comunicacional aberto e subjetivo que supera as limitações do sistema verbal. Estas produções estão sim incluídas no sistema que se reconhece como arte contemporânea, mas, como afirma Montero, mais que conceber a partir de inteligências artísticas, busca-se, sobretudo, reflexões político-sociais.


Bibliografia
MONTERO, R. Arte e Imagem como construção de memórias familiares da pós-ditadura argentina.
  


[1] Rodrigo Montero: Mestre em História, Teoria e Crítica da Arte pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2013). Formado em Artes Visuais com ênfase em História, Teoria e Crítica da Arte pelo Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2010)
[2] Montero, R. Arte e Imagem como construção de memórias familiares da pós-ditadura argentina.
[3] Fonte: http://www.gustavogermano.com/
[4] Fonte da imagem: http://weblogs.clarin.com/itinerarte/2007/04/09/historia_de_una_doble_profanacion/
[5] Fonte da imagem: http://image.slidesharecdn.com/corporalidadymemoria-sep09resumenparass-100128044843-phpapp01/95/corporalidad-y-memoria-en-ensayos-fotogrficos-20-728.jpg?cb=1265263570


(AEM, 2016)

Nenhum comentário:

Postar um comentário